CASE REPORT

1º Caso Clínico: Homem, de 34 anos, com história de eritema nodoso, internado por quadro insidioso de dor epigástrica, astenia, icterícia e colúria, com 1 mês de evolução. No exame objetivo, apresentava icterícia e dor à palpação da região epigástrica. Laboratorialmente, havia evidência de colestase, com elevação das transaminases (bilirrubina total 6,0 mg/dL, fosfatase alcalina 343 UI/L, GGT 206 UI/L, AST 95 UI/L, ALT 151 UI/L). Ecograficamente, observou-se dilatação da via biliar principal (15 mm), pelo que foi submetido a CPRE, onde se visualizou estenose regular da via biliar principal (VBP) na sua porção intrapancreática (Figura 1), tendo sido colocado uma prótese plástica (10Fr). Foi realizada ecoendoscopia (EUS) que documentou cabeça pancreática hipoecóide e ligeiramente heterogénea, não se visualizando ducto pancreático principal (Figura 2). Efetuou-se biópsia com agulha Trucut 19G (Quick-core, Cook Endoscopy), com uma passagem ao nível do istmo. Do ponto de vista histológico, verificou-se fibrose pancreática extensa, ductopénia e infiltrado linfocitário, predominantemente periductal e perivenular (Figura 3), aspetos estes sugestivos de pancreatite autoimune (PAI). O doseamento de IgG4 sérica estava elevado (212mg/dL), corroborando o diagnóstico de PAI tipo 1.

Figura 1 – CPRE: estenose regular da VBP distal

 

Figura 2 – EUS linear: cabeça pancreática (via transbulbar)

 

Figura 3 – Biópsia pancreática: H&E, 100x (agulha Trucut 19G)

 

Durante o internamento, o doente desenvolveu ainda quadro de diarreia, hematoquézias e dor abdominal. Foi realizada colonoscopia total e ileoscopia, que mostrou mucosa com erosões e ulcerações superficiais, edema e perda do padrão vascular ao longo de todo o cólon, com íleon poupado. As biopsias do cólon confirmaram o diagnóstico de pancolite ulcerosa em fase ativa. Perante os diagnósticos de PAI tipo 1 e pancolite ulcerosa, iniciou corticoterapia oral com prednisolona (40 mg/dia) e terapêutica com messalazina (oral e tópica), com rápida melhoria clínica e analítica, incluindo normalização do doseamento de IgG4. Um mês mais tarde, a prótese biliar foi removida, sem recorrência da colestase.

 

2º Caso Clínico:

 

Mulher, de 22 anos, sem antecedentes pessoais relevantes, internada por diarreia crónica com sangue (com 2 meses de evolução) e dor epigástrica persistente, com irradiação em cinturão, com início na semana anterior ao internamento. Ao exame objetivo, salientava-se dor e empastamento à palpação dos quadrantes superiores do abdómen. Analiticamente, existia elevação dos parâmetros inflamatórios (leucócitos 15.400×109 UI/L, 70% neutrófilos, PCR 2,6 mg/dL), elevação da lipase (3426 UI/L) e ASCA e ANCA positivos. Realizou colonoscopia total com ileoscopia, onde se visualizou edema e friabilidade da mucosa de todo o cólon, com íleon poupado, e cujas biopsias confirmaram o diagnóstico de pancolite ulcerosa em fase ativa. A doente iniciou-se terapêutica com messalazina (oral e tópica), com melhoria clínica e analítica, tendo alta ao 7º dia de internamento.

 

Duas semanas mais tarde, foi reinternada por recidiva da dor epigástrica (em cinturão), intensa e persistente. Analiticamente, apresentava nova elevação dos parâmetros inflamatórios (Leucócitos 14.400×109 UI/L, PCR 26,4 mg/dL) e elevação marcada da lipase (8158 UI/L). O doseamento de IgG4 sérica foi normal e a ecografia abdominal superior não mostrava alterações. Realizou, por isso, ecoendoscopia, onde se constatou pâncreas globoso, discretamente hipoecóide, homogéneo, não sendo visível o ducto pancreático principal nem o segmento intrapancreático da VBP (Figura 4). Foi efetuada biópsia com agulha Procore 19G (Cook Endoscopy), com uma passagem ao nível do istmo (Figura 5).

Histologicamente, observou-se processo inflamatório pancreático com linfócitos e numerosos polimorfonucleares (Figura 6), com pesquisa de IgG4 negativa, compatível com o diagnóstico de PAI tipo 2. A doente iniciou corticoterapia com prednisolona oral (40 mg/dia), com resolução completa das queixas e descida dos parâmetros inflamatórios e das enzimas pancreáticas.

Figura 4 – EUS linear: istmo pancreático (via transgástrica)

 

Figura 5 – EUS linear: FNB do istmo pancretático (via transgástrica)

 

Figura 6 – Cell block do pâncreas: H&E, 100x (agulha Procore 19G

 

 

Discussão:

Em ambos os casos, doentes jovens tiveram uma apresentação clínica simultânea e rara de PAI e pancolite ulcerosa. A ecoendoscopia foi determinante para o diagnóstico nos dois casos, com achados ecográficos sugestivos e aspetos histológicos típicos de PAI nas biópsias obtidas com agulha Trucut 19G num dos casos e com agulha Procore 19G no outro caso. Curiosamente, um dos casos com critérios de PAI tipo 1 e o outro de PAI tipo 2, ambos com rápida melhoria após instituição de corticoterapia. A PAI é uma doença rara, com duas formas distintas de apresentação clínica, laboratorial e histológica.

A PAI tipo 1 ou pancreatite linfoplasmocítica esclerosante é considerada a apresentação pancreática da doença fibroinflamatória IgG4-relacionada. É mais frequente no sexo masculino e associa-se a outras manifestações sistémicas desta doença. A PAI tipo 2 ou pancreatite ductocêntrica idiopática, menos comum que a anterior, caracteriza-se pela presença de lesões granulocíticas epiteliais (com infiltração por polimorfonucleares). Afeta indivíduos mais jovens, sem predomínio de sexo, e não está associada a elevação sérica da IgG4.

Recentemente, foi descrita uma maior prevalência de colite ulcerosa nos doentes com PAI comparativamente à população geral: ~6% prevalência global (na PAI); 16 a 35% na PAI tipo 2. Salienta-se que na maior série publicada na literatura de doentes com PAI (multicêntrica; n=731) são apresentados 12 casos de apresentação simultânea de PAI e colite ulcerosa.

 

A EUS tem assumido uma importância crescente no diagnóstico da PAI. Independentemente da sua forma da apresentação, os achados ecoendoscópicos mais característicos são o aumento difuso do pâncreas (mais frequente e mais exuberante na PAI tipo 1), tipicamente hipoecóide, e o estreitamento do ducto pancreático principal e do segmento intrapancreático da VBP. Além de contribuir para o diagnóstico imagiológico da PAI, a EUS permite ainda a obtenção de material histológico.

 

Autores: Susana Marques, Miguel Bispo, Pedro Barreiro e Pedro Pinto Marques Instituições: Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental, Hospital Garcia de Orta e Hospital da Luz