Pesquisa

Erros comuns

Erros comuns na abordagem diagnóstica da ascite no doente cirrótico

Mariana Verdelho Machado

Faculdade de Medicina, Universidade de Lisboa

Serviço de Gastrenterologia, Hospital de Vila Franca de Xira

Hospital da Luz Oeiras e Hospital da Luz Amadora

1. Não pesquisar outras causas de ascite no 1º episódio de ascite em doentes com cirrose hepática.

Um doente com cirrose hepática que se apresenta com um 1º episódio de ascite deve ser internado e submetido a uma investigação aprofundada da causa da ascite, bem como do factor precipitante. Um doente com cirrose hepática pode apresentar outras etiologias para o desenvolvimento de ascite, como a carcinomatose peritoneal, insuficiência cardíaca direita, ascite pancreática e síndrome nefrótico. Esse risco até pode estar aumentado nos doentes com cirrose hepática, havendo factores de risco comuns para o desenvolvimento de diferentes doenças. Por exemplo, o consumo excessivo de álcool associa-se a risco de cirrose hepática, bem como miocardiopatia dilatada, nefrite a IgA e doença pancreática. De facto, 5% dos doentes com cirrose hepática apresenta outra etiologia para a ascite além da hipertensão portal (Runyion BA, 1992).

Considerar que um gradiente soro-ascítico de albumina (GSAA) ≥1,1 g/dL exclui causas de ascite não relacionadas com hipertensão portal em doente com cirrose hepática.

Quando há cirrose hepática e hipertensão portal, o GSAA tende a ≥1,1 g/dL, mesmo quando há outra causa de ascite que tradicionalmente se associa a GSAA baixo. Um GSAA alto apenas permite fazer o diagnóstico de hipertensão portal com uma precisão de 97%, mas não exclui a concomitância de outras causas de ascite. Este pormenor é muito importante uma vez que o doente com ascite pode apresentar múltiplas etiologias para a ascite simultaneamente. Por exemplo, 1 em cada 10 doentes com carcinomatose peritoneal e 2 em 5 com tuberculose peritoneal têm cirrose hepática. Por outro lado, a utilização de diuréticos não influencia o GSAA (Runyion BA, 1992).

Avaliar o CA125 para o diagnóstico diferencial de neoplasia ginecológica.

O CA125 sérico não tem valor discriminativo para a neoplasia do ovário em doentes com ascite, uma vez que pode estar elevado em qualquer forma de ascite benigna, estando elevado em 70% dos doentes com cirrose hepática e ascite (Collazos J, 1992).

Enviar quantidade insuficiente de líquido ascítico para pesquisa de células neoplásicas.

Uma vez que a concentração de células neoplásicas no líquido ascítico é baixa, devem ser enviados 3 frascos com 50 mL de líquido ascítico para a pesquisa de células neoplásicas, o que se associa a sensibilidade de 97% para carcinomatose peritoneal (versus 93% com 2 frascos e 82% com 1 frasco)(Runyon BA, 1988a).

Diagnosticar peritonite bacteriana espontânea em doentes com contagem de PMN ≥250 células/mm3, quando a percentagem de PMN é <50%, sem considerar a hipótese de carcinomatose peritoneal, linfoma ou tuberculose peritoneal.

Um terço dos doentes com carcinomatose peritoneal apresentam contagem de PMN ≥250 células/mm3 (Wang SS, 1994). A probabilidade de haver peritonite bacteriana é muito baixa já que o conteúdo proteico/capacidade de opsonização é alto nos doentes com carcinomatose peritoneal. Deve ser também considerada a hipótese de linfoma ou tuberculose peritoneal quando há um predomínio de células mononucleadas.

Enviar o líquido ascítico em tubo estéril para a microbiologia.

Inocular 10mL de líquido ascítico em meio de hemoculturas, aumenta a sensibilidade para 80% comparativamente aos 50% associado ao envio em tubo estéril (Runyon BA, 1988b).  

Corrigir as alterações da coagulação antes da paracentese.

Não está indicada a avaliação por rotina do INR ou contagem de plaquetas, bem como a correcção das alterações da coagulação previamente à paracentese diagnóstica ou evacuadora (Aithal GP, 2021). A paracentese deve ser evitada, contudo, em doentes com fibrinólise acelerada ou coagulação vascular disseminada (EASL, 2018).