E, afinal, o mundo não acabou. O “bug do millennium” não criou o caos aos primeiros minutos do dia 1 de Janeiro de 2000. Não caíram aviões, nem foram disparados mísseis acidentalmente. Ao contrário dos receios de muitos, o planeta continuou a girar e a fazer acontecer a modernidade. Uma modernidade que está totalmente rodeada de tecnologia, de conquistas à escala mundial e de avanços notáveis. Tão notáveis quanto inovadores.
A abrir a década, no ano de 2000, a medicina rendia-se à possibilidade de “instalar”, com sucesso, um coração artificial dentro do corpo humano.Um coração totalmente independente. Fazia-se história na medicina com a utilização do Jarvik 2000, um dispositivo de assistência cardíaca muito diferente de todos os que tinham existido até à data e que tinham provocado algumas complicações. Um coração sem fios e que conseguiu prolongar a vida de Peter Houghton, o primeiro paciente a recebê-lo, por sete anos.
O paciente de 63 anos sofria de uma condição que o impedia de fazer um transplante cardíaco. Em Portugal, o primeiro implante de coração artificial interno e definitivo foi executado no hospital de Santa Marta em 2017 uma equipa liderada por José Fragata.
Enquanto o planeta se alinhava para salvar vidas, o terrorismo alinhava-se em sentido contrário. Faltavam poucos minutos para as 9 da manhã de um dia como todos os outros dias em Nova Iorque. Em torno das Twin Towers, a 11 de Setembro de 2001, reinava a costumeira agitação matinal quando em poucos minutos o maior atentado da história americana deixaria um rasto de destruição, cerca de três mil mortos de 80 nacionalidades, seis mil feridos e uma ferida que nunca mais haveria de sarar.
Um grupo de terroristas suicidas da Al-Qaeda apoderou-se de quatro aviões, dois embateram no World Trade Center com poucos minutos de diferença, um no Pentágono e o quarto foi o único a não atingir o alvo que seria a Casa Branca ou o Capitólio. Desde esse dia que o mundo não mais voltou a ser o mesmo. O receio de novos ataques passou a ser uma constante. Voltou a ser uma realidade evidente em Madrid a 11 de Março de 2004, com um atentado a dois comboios que explodiram nas estações de Atocha e El Pozo e um ano mais tarde, voltou a ser uma realidade em Londres, a 7 de Julho, com três bombas a explodirem no metro e uma outra num autocarro da cidade. O terrorismo islâmico abria uma fissura entre o ocidente e oriente sem precedentes.
O mundo da aviação começou os anos 2000 com uma perda histórica. O Concorde, a mais icónica aeronave supersónica de transporte de passageiros, sofreu um acidente a 25 de Julho de 2000. O avião descolou do Aeroporto Charles de Gaulle, em Paris, com destino ao Aeroporto Internacional John Fitzgerald Kennedy, em Nova Ioque, mas despenhou-se ainda em território francês vitimando 100 passageiros e 9 tripulantes.
Este acidente marcou o início do fim da história do Concorde que tinha começado a operar em 1976 e a proporcionar experiências únicas a quem viajava a bordo. Era possível descolar de Londres à hora do pôr do sol e chegar a Nova Iorque ainda de dia. A sua velocidade era mais rápida do que a rotação da Terra.
No entanto, a sua história foi sempre polémica sobretudo pelo ruído que causava ao ultrapassar a barreia do som e pela excessiva poluição que provocava, mas também pelo preço das viagens que rondava os 10 mil dólares. Este foi o primeiro e último acidente com um Concorde, que deixou de operar em definitivo em 2003.
A década foi marcada por dois fenómenos naturais que deixaram um rastro de destruição. A 26 de Dezembro de 2004 era impossível conter as lágrimas ante a devastação a que se assistia no sudeste asiático. Um forte terramoto de 9.3 graus na escala de Richter seguido de uma série de tsunamis causaram a morte a cerca de 230 mil pessoas em 14 países. Este foi o segundo terramoto mais forte alguma vez registado num sismógrafo e o mais longo alguma vez observado com a cerca de 9 minutos de duração. O mundo juntou-se para dar resposta à crise que se seguiu reunindo mais de 7 mil milhões de dólares em ajuda humanitária aos países mais afetados. Ainda mal recuperado desta devastação, o Mundo assistiu a outra. Desta vez, nos Estados Unidos, em Agosto de 2005, um furacão de categoria 5 causou danos catastróficos em toda a costa sul do país, desde a Flórida até ao Texas. O Furacão Katrina causou mais de 1.800 óbitos, sendo New Orleans a mais afetada devido ao colapso do sistema de diques que protegia a cidade, e prejuízos na ordem dos 125 mil milhões de dólares. No mes- mo ano, a 2 de Abril, depois de quase 27 anos de pontificado, o Papa João Paulo II morreu deixando um considerável legado de paz no Mundo. Foi considerado um dos líderes mais influentes do século XX e canonizado pelo Papa Francisco em 2014. Enquanto Portugal entrava no Euro e se desabituava de fazer contas a quantos escudos cabiam dentro dos Euros, surgia o fenómeno Bitcoin.
A 4 de Janeiro de 2009, as Bitcoins eram criadas por alguém sob o pseudónimo Satoshi Nakamoto e até hoje não se conhece a identidade do seu, ou dos seus, criadores. Em Abril desse ano um foco de gripe suína no México causou mais de 20 mortes. Após uma análise detalhada destes óbitos constatou-se que a causa era uma nova estirpe do vírus da Gripe A, o H1N1.
A rápida expansão geográfica desta doença levou à classificação de pandemia a 11 de Junho desse ano, pela Organização Mundial da Saúde. Cerca de um ano depois seria declarado o fim da pandemia. Foi a primeira pandemia do novo milénio e a sua escala global foi suficiente para que a população mundial perceber a capacidade de proliferação de uma doença nos tempos modernos. Os mesmos tempos modernos em que se assistiu à proliferação de uma das maiores preocupações de saúde pública a nível mundial: a obesidade. A 23 de Março de 2003 surgia a campanha “5-a-Day”, um programa à escala global que incentivava o consumo de, pelo menos, cinco porções de frutas e vegetais diárias seguindo a recomendação da Organização Mundial de Saúde do consumo de 400 gramas de vegetais por dia.
O objetivo passava pelo combate à obesidade, mas também pela redução do risco de doenças cardiovasculares, cancros e diabetes. Este programa foi implementado em vários países como a Austrália, Canadá, França, Alemanha, Noruega, Nova Zelândia ou Inglaterra. Em 2006, o reconhecido chef inglês Jamie Oliver deu início a uma mediática campanha que visava banir a “comida de plástico” das escolas e promover a comida saudável nas cantinas escolares. O impacto desta campanha atingiu proporções políticas que contribuíram para a melhoria da dieta alimentar nas escolas. Esta foi uma década de causas e uma das mais visíveis foi a interdição de fumar em espaços públicos que começou a ser aplicada em vários países.
A promoção da saúde pública foi a grande causa desta década. Juntaram-se outras preocupações mundiais que começaram a emergir como as alterações climáticas e o aquecimento global. O documentário Uma Verdade Inconveniente (2006), baseado na campanha do Vice-Presidente dos Estados Unidos, Al Gore mediatizou a necessidade de cuidar do planeta.
Esta tornou-se numa preocupação à escala mundial com os governos a implementarem medidas de contenção à emissão de gases e a penalizar aqueles que entravam em incumprimento relativamente ao nível de poluição causada.
Em Portugal os anos 2000 foram vividos intensamente. Enquanto o Processo Casa Pia, 2002, o polémico abaixo assinado das “Mães de Bragança”, em 2003, e o desaparecimento de Maddie McCann, em 2007, deixavam o país chocado, tudo mudava. Muita desta mudança esteve associada à disputa do Campeonato Europeu de Futebol em Portugal. Durante o verão de 2004, o país foi invadido por futebol e adeptos de todas as partes do mundo que encheram
os estádios e as maiores cidades do país. A Grécia venceu a competição, mas Portugal conquistou destaque a nível mundial. Um destaque para além da genialidade de Cristiano Ronaldo. O astro foi o terceiro português a alcançar este feito, depois de Eusébio, em 1965, e de Figo, em 2000. Em 2013, 2016 e 2017 voltava a ser considerado o melhor do Mundo e a receber a Bola de Ouro. O futebol português ficou marcado pela vitória do Sporting Clube de Portugal ao fim de 18 anos sem receber o título.
Em 2007, Portugal voltava a ser alvo de todas as atenções mundiais. Desta vez pela assinatura do Tratado de Lisboa. Um tratado reformador que veio complementar os anteriores tratados europeus. Foi assinado no Mosteiro dos Jerónimos pelos 27 estados membros, tendo entrado em vigor em 2009. Mas não faltaram acontecimentos trágicos como a queda da Ponte Hintze Ribeiro em Entre-os-Rios, a 4 de Março de 2001. O colapso desta infraestrutura provocou 59 mortos. Para além da tragédia das perdas humanas, viveu-se uma crise política no apuramento das responsabilidades.
A década terminaria em crise, mas desta vez económica. Em 2008, a crise do subprime levou à queda do mercado imobiliário nos Estados Unidos e, posteriormente, no resto do Mundo.
O sistema bancário sucumbiu a esta crise e levaria quase uma década a recuperar. Seguiram-se anos negros para a economia à
escala global. Portugal não foi exceção atravessando uma crise sem precedentes que só começou a ser ultrapassada no final da década seguinte. As estatísticas da saúde desta década revelam uma realidade que aponta para a evolução da medicina e dos profissionais de saúde. A Gastrenterologia não foi exceção.
No início da década estavam inscritos na Ordem 32.498 médicos, dos quais 17.914 eram do sexo masculino e 14.584 do sexo feminino. Existiam em 2000, 298 médicos por 100.000 habitantes. Entre o número total de médicos, 376 eram gastrenterologistas no país.
Portugal contava, neste início de década com 221 hospitais e 393 centros de saúde. Estes últimos serviam, em média 26.063 habitantes. O número de farmácias continuava a aumentar seriam 2.560 no primeiro ano da década e as referências médicas que eram de 6.651 medicamentos, dos quais 39 por cento eram comparticipados. Entre as doenças de declaração obrigatória
contaram-se 13.464 registos, dos quais 286 terão sido notificações de Hepatite B e 203 de Hepatite C.
Durante o ano 2000 morreram 105.813 pessoas, sendo a causa de morte em 50%, as doenças do aparelho circulatório e os tumores malignos. Os tumores malignos do aparelho digestivo foram bastante significativos com 2.617 óbitos por tumores no estômago, 2.038 por tumores no cólon e 825 do reto. As restantes doenças do aparelho digestivo causaram a morte a 2.176 pessoas, entre úlceras no estômago e duodeno, apendicites e doença crónica do fígado e cirrose, havendo uma especial predominância desta última com 1.822 casos.
O boom da Gastrenterologia
Os gastrenterologistas dos anos 2000 começaram a receber pacientes distintos dos que haviam recebido até então. O advento da tecnologia e da internet alteraram gradualmente o perfil dos pacientes. “O Dr. Google assusta as pessoas que ficam em pânico e andam à procura de soluções na internet. Quando chegam vêm confusos e assustados e por isso acabam por confiar muito na nossa palavra”, afirma Rui Tato Marinho. Houve, efetivamente, alterações do ponto de vista geográfico que justificam a modificação do perfil dos pacientes. Leopoldo Matos recorda que a criação de serviços de Gastrenterologia por todo o país fez com que as pessoas não necessitassem de percorrer grandes distâncias para encontrar um especialista.
Os doentes das regiões do interior e periféricas, deslocavam-se a Lisboa, Porto e Coimbra “porque não havia gastrenterologista pelo caminho. Se há uma década ainda era comum receber pacientes de zonas rurais nas grandes cidades, essa é uma realidade cada vez mais rara.
Os doentes mudaram, na generalidade. Hoje são mais informados, mais exigentes e têm uma atitude de partilha de decisões e de opções. Anteriormente, tinham uma atitude mais passiva”, recorda Leopoldo Matos. A mesma perspetiva defende Diniz de Freitas que assume que a relação paciente médico se tornou mais cúmplice:
“O médico está cada vez mais comprometido com o doente e isso determina um novo paradigma de prestação de cuidados de saúde”.
Se os doentes mudaram, as patologias ainda mudaram mais. Quanto mais se sabe sobre o sistema digestivo, mais se percebe que ele está em permanente mutação, que há sempre algo de diferente que é, também, potenciado por tecnologias que permitem imagens cada vez melhores e mais complexas do interior do corpo humano. As doenças aumentam e diminuem a sua incidência porque são descobertos novos fármacos ou tratamentos. “Há 40 anos faziam-se 20 endoscopias e 4 colonoscopias, agora é ao contrário. Em cada 20 endoscopias descobríamos 10 úlceras duodenais, agora quando se vê uma é muito. Pode ter a ver com a irradicação da Helicobacter Pylori, mas também pode ter a ver com as alterações alimentares. Porque é que agora há mais refluxo? Será da obesidade? Por outro lado, há obesos que não tem refluxo e pessoas magras que têm. Porquê?”, as questões colocadas por Leopoldo Matos são semelhantes às dos restantes gastrenterologistas que se vêm confrontados com a alteração permanente das patologias que chegam às consultas. Muitas destas incógnitas estão relacionadas, segundo Guilherme Macedo, com o detalhe do entendimento da fisiologia da motilidade, da absorção e do que acontece aos nossos nutrientes quando passam pela fronteira do intestino.
É neste diálogo entre o meio externo e o meio interno que ainda persistem muitas das incógnitas que fomentam uma profunda necessidade de conhecimento por parte dos gastrenterologistas.
O pâncreas é um dos exemplos claros da dificuldade de compreensão médica. Efetivamente sabe-se que há fatores de risco que explicam a patologia pancreática. Sabe-se que o tabaco, a obesidade e a diabetes são fatores de risco associados ao aparecimento destas doenças. “Mas sempre se fumou e sempre houve diabetes. Pode é ter havido uma mudança na suscetibilidade genética das populações que explica o aumento galopante do cancro do pâncreas quer na incidência, quer na mortalidade”, refere Pedro Moutinho Ribeiro. Estas dúvidas que para os gastrenterologistas são apaixonantes e desafiantes aumentam gradualmente a busca por mais conhecimento. “Um dos grandes desafios da gastrenterologia é a incompreensão de determinadas evidências e de não poder haver dogmas. O dogma do meu tempo de aluno era ‘No acid, no ulcer’. Hoje sabemos que não é assim e por isso não se pode ter dogmas em medicina. É preciso ter
sempre o espírito aberto porque a medicina vai ser sempre um furor de interrogações. Umas provocam ansiedade, porque gostávamos de ter as pessoas vivas por mais tempo sem sofrimento, outras são meras curiosidades”, afirma Leopoldo Matos dando suporte a Miguel Bispo que recorda, a este propósito, uma famosa citação que diz que “a medicina é a arte da incerteza e a ciência das probabilidades”. Estas incertezas aumentam com “fenómenos” como a doença celíaca ou a intolerância à lactose. Pode ser uma moda, “mas também é uma moda que pode ter algum sentido que não entendemos e que pode estar relacionado com a microbiota. Esta é uma área de grande desenvolvimento e de alguma ignorância que nos traz dificuldades na ajuda a quem sofre”, acrescenta Leopoldo Matos.
Uma das formas de combate a estas dúvidas, que são cada vez maiores à medida que o conhecimento avança, passa pela especialização dos médicos no seio da gastrenterologia. Se um interno vem repleto de conhecimento geral, um especialista cinge o seu conhecimento a áreas cada vez mais limitadas.
Fibroscan® Este aparelho foi disruptivo e revolucionou a hepatologia
A diferenciação e a superespecialização são uma tendência da medicina moderna que a torna mais rica. “Cada vez percebo mais de menos coisas. Quanto mais percebo de pâncreas e vias biliares, menos percebo de fígado e doença inflamatória. Essa é a parte mais apaixonante da nossa especialidade”, afirma Pedro Moutinho Ribeiro.
Essa especialização acontece na mesma medida do avanço da investigação. O Centro Nacional de Registo de Dados em Gastrenterologia (CEREGA) foi criado no biénio 2005/2007 com o objetivo de apoiar o desenvolvimento de estudos multicêntricos nacionais. Surge como uma incubadora para os estudos de investigação clínica. “É uma estrutura que pode dar visibilidade e projeção à sociedade e que permite uma grande recolha de dados.
É um instrumento que permite que diversos estudos feitos em diversos centros se possam conjugar em relação a um determinado tipo de patologias”, explica Carlos Sofia que presidia a Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia quando este centro foi criado. Atualmente, o CEREGA está “saudável” e é, segundo Rui Tato Marinho, primeiro presidente do CEREGA, uma área de investimento da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia.
O regresso do fado e a emergência dos reality shows
O universo das artes modificou-se nesta década. Em 2009, James Cameron, voltou a surpreender em Avatar. Às inovadoras técnicas cinematográficas, o realizador abordou a biodiversidade, o heroísmo e o capitalismo sob uma perspetiva futurista que fez deste filme um dos maiores sucessos de bilheteira de sempre. O desenvolvimento dos computadores e da tecnologia escancaram as
portas à indústria do cinema que passou a criar efeitos especiais e animação computorizada. Assim surgiu o ogre mais maldisposto da indústria cinematográfica. Shrek, baseado no livro de William Steig. Foi um sucesso de bilheteira não só por contar as aventuras e desventuras do ogre e do seu amigo burro, mas sobretudo pela inovação ao nível dos efeitos conseguidos através de uma tecnologia emergente. Um sucesso semelhante à adaptação do universo mágico de Harry Potter ao cinema que aconteceu ao longo desta década. A magia invadia as salas de cinema filme após filme. O universo mágico expandia-se para o cinema fantástico que surgiu com o Senhor dos Anéis. Depois dos ogres e dos muggles, era a vez dos hobbits surgirem nas telas. Não faltaram sucessos de todos os géneros na década entre 2000 e 2009. Se Amelie (2001) surgiu como uma obra prima da consagração da beleza, Mulholland Drive (2001) consagrava David Lynch como realizador.
Quanto mais se sabe sobre o aparelho digestivo, mais se percebe que ele está em permanente mutação
Foi uma época em que os realizadores modernos surgiram de uma forma apoteótica. Já não eram apenas os atores e ter seguidores, mas os próprios realizadores a darem provas do seu talento. Quentin Tarantino estreou Kill Bill em 2003 inaugurando um estilo único e onde não falta sangue. Muito sangue. Tanto quanto o que corre no filme Cidade de Deus, que estreou em 2002. A história das favelas brasileiras contada por Fernando Meireles conquistou a crítica mundial. Tal como a pobreza na India, Quem Quer Ser Milionário, em 2008, contava a história de um dos programas mais mediáticos da década ao estilo Bollywood. No espetro oposto, Brokeback Mountain trazia para o cinema mainstream a temática da homossexualidade e consagrava o talento de Heath Ledger. Um dos
atores mais brilhantes da sua geração e que haveria de morrer em 2008. Uma morte tão trágica para o mundo das artes como a de Michael Jackson que morreu a 25 de Junho de 2009.
A música da década de 2000 fica marcada pela proliferação de estilos musicais. Entre Eminem e Lady Gaga cabem todos os estilos musicais modernos. Hip Hop, pop ou R&B foram sendo evidenciados pelas vozes de Justin Timberlake, Beyoncé, Jay-Z e Christina Aguilera. No Reino Unido, Amy Winehouse conquista Camden e rapidamente estende a sua conquista a todo o globo. O mundo literário foi agraciado com algumas obras marcantes e best sellers.
No início da década, Daniel Silva dava a conhecer aos amantes dos policiais o espião Gabriel Allon em O Artista da Morte. Seguiram-se mais 19 livros desta série de aventuras de espionagem. Também Dan Brown surgia, em 2003, com o sucesso de vendas Código Da Vinci. Foi nesta década que a série Guerra dos Tronos de George R.R. Martin foi traduzida para português. Em Abril de 2019 estimava-se que já tinham sido vendidas mais de 90 milhões de cópias em 47 idiomas. Em Portugal, Miguel Sousa Tavares publicava, em 2003, o seu mais afamado romance, Equador. Em 2001, Agustina Bessa-Luís publicada a trilogia O Princípio da Incerteza composta por Jóia de Família (2001), A Alma dos Ricos (2002) e Os Espaços em Branco (2003). A obra foi adaptada por Manoel de Oliveira em 2002. Na década de 2000, a obra de Valter Hugo Mãe destacou-se na área da poesia, romance e literatura infantil. Em 2007, o escritor foi agraciado com o Prémio Literário José Saramago. A década terminava a década com 1Q84, uma das mais brilhantes das obras distópicas de Haruki Murakami.
Nas rádios portuguesas sentia-se uma grande proliferação de géneros musicais. Esta foi a década em que o mal-amado fado, dos anos 90, recuperou o seu estatuto. Vozes como Mariza, Camané, Ana Moura, Raquel Tavares surgiram como uma renovadora geração do fado. Mas também surgiu a diversidade em redor do fado. Os Deolinda e os Naifa modernizaram os sons da guitarra portuguesa. Bandas como os The Gift, Dead Combo, Humanos e Da Weasel, evidenciaram a diversidade da música portuguesa e outras como Buraka Som Sistema inauguraram estilos que até então não existiam em Portugal. A cultura portuguesa estava ao rubro nesta década. Em 2001, o Porto foi Capital Europeia da Cultura e assim começava uma história de desenvolvimento cultural da cidade que provava que Portugal não era só Lisboa. Prova disso mesmo foi a inauguração da Casa da Música em 2005.
O edifício desenhado por Rem Koolhaas é o primeiro edifício português dedicado exclusivamente à música e um local icónico da cidade. Em 2002 foi inaugurado o, há muito esperado, Metro do Porto.
A subespecialidade de Hepatologia surge em resultado da, cada vez maior, especialização existente dentro da gastrenterologia
A televisão portuguesa ganhou um novo fôlego na década de 2000. A ficção portuguesa começou a ganhar expressão, tal como os reality shows e os concursos de perguntas gerais. O fenómeno Big Brother estreou em 2000 e foi líder de audiências destacado. Foi neste mesmo ano que estreou o Quem Quer ser Milionário, apresentado por Carlos Cruz. As telenovelas portuguesas começavam a fazer cócegas ao sucesso das novelas brasileiras e a indústria da ficção portuguesa, embalada pelas audiências, cresceu exponencialmente durante os anos 2000. Séries, telenovelas, adaptações literárias lusas começaram a conquistar os portugueses. Foi também nos anos 2000, que surgiram os programas de talentos, nomeadamente os musicais, cresceram. Programas como Ídolos ou
Operação Triunfo consagraram muitos dos cantores portugueses da atualidade. Em 2003 surgiram os Gato Fedorento, inaugurando os programas de sketches humorísticos em Portugal. José Diogo Quintela, Miguel Góis, Ricardo de Araújo Pereira e Tiago Dores assumiram o estatuto de heróis do humor em Portugal.
A subespecialidade do órgão misterioso
“A observação, não cirúrgica, da superficio do figado, era conseguida através da introdução na cavidade peritoneal, de um peritoneoscópio”, recorda Leopoldo Matos.
Em 2005, depois de algumas tentativas de emancipação e de muitas tentativas de conquista deste território por outras espacialidades, a Hepatologia era formalmente reconhecida como subespecialidade da gastrenterologia. Medicina Interna, Infecciologia e Gastrenterologia movem-se em torno do fígado e das doenças que o caraterizam. A subespecialidade de Hepatologia surge em consequência da, cada vez maior, especialização existente dentro da gastrenterologia. O volume de conhecimento que se ia gerando era de tal ordem que vários optaram por se diferenciar em áreas distintas dentro da gastrenterologia, fosse para o estudo do fígado, pâncreas, cólon ou vias biliares.
Para alguns especialistas fazia sentido autonomizar esta área. José Velosa conta que até à criação da subespecialidade houve uma grande polémica em torno desta questão: “A Hepatologia trazia muitos proventos para a Gastrenterologia e não se queria aliená-la. Esta subespecialidade foi-se desenvolvendo e estivemos na vanguarda até que às tantas se começou a pensar em autonomizá-la. Enquanto fui Presidente da SPG no biénio de 2007-2009 procurei a autonomia da Hepatologia. Isto estava muito ligado ao papel da Associação Portuguesa para o Estudo do Fígado (APEF). Mas depois tivemos o bom senso de fundir as sociedades dentro do âmbito da gastrenterologia”. O que se percebeu que mais importante do que autonomizar era não criar cisões e manter a unidade da gastrenterologia. Durante estes anos a APEF autonomizou-se e passou a ser uma sociedade. “A Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia é a especialidade mãe e depois tem os seus filhotes, mas sem perda de identidade e de autonomia em relação aos seus limites”, refere Diniz de Freitas. Estima-se que o fígado seja responsável por cerca de 5.000 funções e as novas tecnologias que têm permitido um conhecimento cada vez mais alargado fizeram desta década um tempo de mudança. Assistiu-se a uma mudança de paradigma que está muito relacionada com o melhor conhecimento das doenças relacionadas com o fígado. As patologias evoluíram.
As Hepatites que tantos problemas haviam causado começam a decrescer devido às vacinas (da Hepatite A e B) e as terapêuticas (da Hepatite C).
No quadro das maiores preocupações dos hepatologistas, as hepatites foram sendo substituídas pelas doenças metabólicas, a esteatose hepática, a NASH ( nonalcoholic steatohepatitis, ou esteatohepatite não alcoólica) as doenças autoimunes e as oncológicas. “As doenças do fígado estão bastante relacionadas com os comportamentos e, sobretudo, com os comportamentos aditivos. Ainda que os comportamentos aditivos em relação ao álcool se mantenham, alteraram-se os comportamentos em relação às drogas. O tipo de drogas, mesmo as farmacológicas, é diferente. As condições epidemiológicas também mudaram e as circunstâncias evoluíram”, afirma Guilherme Macedo.
As doenças do fígado representam um relevante problema de saúde pública e a subespecialização é procurada por cada vez mais gastrenterologistas. A subespecialização foi acontecendo naturalmente em vários outros países à medida que se iam conhecendo estas novas doenças e se foram desenvolvendo novos métodos de diagnóstico e novas terapêuticas, aliado às questões médicas veio o impacto socioeconómico das patologias hepáticas. Estima-se que existam mais de 100 tipos de doenças do foro hepático, a grande maioria relacionada com os comportamentos já referidos, mas também com a obesidade e a diabetes. A deteção destas doenças está relacionada com a evolução das técnicas de diagnóstico que evoluíram para além da tradicional biopsia hepática ou da ecografia. Foram identificados novos marcadoresserológicos e virológicos e a imagiologia evoluiu trazendo uma imagem cada vez mais aperfeiçoada do fígado. Estes avanças foram suficientes para eliminar muitas das biopsias hepáticas que eram feitas. Por outro lado, a genética hepática contribuiu fortemente para a abordagem dos médicos à generalidade das doenças hepáticas, nomeadamente em relação às doenças colestáticas e metabólicas do fígado.
Outro avanço importante no diagnóstico das doenças hepáticas, e que surgiu em 2005, foi o Fibroscan®. Este exame, também denominado elastografia hepática transitória, é realizado com uma sonda que envia ondas de ultrassons através do fígado. A velocidade destas ondas está relacionada com a rigidez do fígado que é indicadora da fibrose. Em 10 minutos, e recorrendo a um método não invasivo, podem identificar-se alterações do parênquima hepático e classificá-las por grau de intensidade. Foi de tal forma disruptivo que foram vários os gastrenterologistas a duvidar da sua eficácia. “Quando ouvi falar do Fibroscan®, pela primeira vez não acreditei que era possível, pensei que era banha da cobra”, refere Rui Tato Marinho que explica: “O Fibroscan® permite perceber se uma pessoa tem cirrose ou não com um grau de fiabilidade 80 por cento. Isto veioalterar muito do que se fazia, como o risco de morte associado à biopsia hepática. Reduziu-se o risco e o grau de fiabilidade de diagnóstico é muito semelhante. Fiz mais de 1.000 biópsias hepáticas, atualmente um interno faz 20 ou 30. O Fibroscan® foi claramente disruptivo”.
Uma disrupção que é permanente em todas as áreas da medicina moderna, mas que na gastrenterologia tem marcado, em muito, a evolução da especialidade. Dada a dimensão do aparelho gastrointestinal, o que se promoveu dentro da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia foi a unidade multidisciplinar. Uma especialidade, uma sociedade. Mas uma Sociedade marcada pela multidisciplinaridade de conhecimentos. Esse será aliás o futuro da especialidade. É unânime, entre os gastrenterologistas, que o futuro da gastrenterologia passa pela união de saberes. “A prática da medicina não se limita ao João Semana, sozinho no consultório, sempre sem dúvidas. A medicina mudou de paradigma e atualmente é multidisciplinar e multiprofissional. É importante juntar o puzzle todo. Por exemplo, o Hospital de Santa Maria tem cerca de 50 especialidades médicas e cerca de 10 áreas não médicas, das quais dependemos”, refere Rui Tato Marinho.
Esta será a tendência da medicina moderna, como refere Leopoldo Matos: “a modernidade na estrutura das Unidades de saúde, é deixar de ser vertical para ser transversal (multidisciplinar). “um expert em fígado, outro em CPRE e outro em endoscopia devem estar sentados a discutir um único doente”.
Guilherme Macedo alerta para a criação desse conceito de multidisciplinaridade junto dos internos de gastrenterologia que atualmente tendem a ter perspetivas de trabalho mais individualizadas relacionadas com uma cultura e uma mentalidade distintas das que viviam há algumas décadas.
“Não vivemos tempos de cowboys, vivemos tempos de tripulações e equipas que sejam oleadas para funcionar bem. É esse espírito de trabalho de equipa que tem de ser desenvolvido nos nossos jovens gastrenterologistas. Aprendemos coisas tão fabulosas e tão apaixonantes que a tentação é virarmo-nos para o nosso umbigo para desenvolvermos, criarmos e expandirmos o nosso conhecimento. Sem limitar essa expansão temos de ser capazes de criar um elo, uma rede, que permita que todos estejam mais fortes individualmente e que o conjunto de todos seja ainda mais forte”.
O último grito da tecnologia
A internet, um fenómeno da década anterior, começava a aperfeiçoar-se e a transformar-se tal como a conhecemos hoje. O Google, criado em 1998, partiu à conquista do Mundo em 2001. O crescimento foi acelerado e de alcance mundial. O motor de busca trouxe agregado a si o Gmail, o Google Maps e o Google News e revolucionou a forma de se estar e de se pesquisar na internet. Estima-se que sejam feitas cerca de 3.5 mil milhões de buscas diárias neste motor de busca e 1.2 biliões por ano. Para o sucesso do Google contribuíram aquisições chave como a compra do YouTube em 2006. Ainda em 2001, haveria de surgir a enciclopédia mais revolucionária da história. A Wikipédia tornou-se num fenómeno de pesquisas sobre todos os temas de todas as áreas, apesar das críticas às suas imprecisões, contém mais de 48 milhões de artigos em 302 idiomas. Não houvesse revolução suficiente no mundo da internet, a 4 de Fevereiro de 2004, Mark Zuckerberg criou o Facebook dando uma nova dimensão aos fenómenos das redes sociais. Apesar de ter sido criada como uma rede social universitária, rapidamente evoluiu, transformando os relacionamentos interpessoais à escala mundial e a forma como as pessoas comunicam atualmente. Dois anos depois, em 2006, nasceu o Twitter.
Os telemóveis acompanharam esta evolução e em 2007, Steve Jobs apresentou o iPhone 1, um aparelho tátil e repleto de novidades que valeu ao equipamento o título de invenção do ano pela revista Time. A expectativa era tão elevada que houve quem acampasse à porta da Apple Store durante os dias que antecederam a venda. Durante o primeiro ano, enquanto impulsionava o mercado dos telefones inteligentes, a Apple vendeu 1.4 milhões de cópias do iPhone 1.
A Apple já havida declarado guerra ao obsoleto no início da década, ao lançar o iPod e ao revolucionar a indústria da música. Os coloridos iPods trouxeram consigo a venda de música digital e a queda das lojas de música. Em consequência, começaram a surgir lojas virtuais como o Spotify (2006). Eram os ventos de mudança que se faziam sentir em todas as áreas da sociedade, nomeadamente na política. A 4 de Novembro de 2008 Barack Obama foi o primeiro presidente afroamericano a ser eleito nos Estados Unidos ao conquistar mais de 69 milhões de votos. No ano seguinte recebeu o Prémio Nobel da Paz em reconhecimento dos seus esforços para fortalecer a diplomacia internacional e a cooperação entre os povos. Para a América deixou um importante legado, a aprovação da Lei de Cuidados de Saúde de Baixo Custo, conhecida como Obama-care. Na Bolívia, Evo Morales surgiu como o primeiro presidente indígena da Bolivia, alicerçando um marco histórico no país. Foi eleito três vezes tendo sido presidente entre 2006 e 2019. Na Alemanha Angela Merkel foi a primeira mulher a alcançar o lugar de Chanceler, em 2005.
O mundo estava em mudança e preparava-se para o futuro. Um futuro tão imediato que se anteviam grandes feitos em todas as áreas da sociedade, da tecnologia à saúde, do entretenimento à economia.