Esta foi uma década que ficou marcada pela democratização da saúde. A emergência do Serviço Nacional de Saúde e a emancipação da Gastrenterologia trouxeram a modernidade para a medicina portuguesa.
Enquanto Portugal lutava pela democracia e empunhava cravos em sinal de liberdade, nos Estados Unidos os microfones levavam à queda de Richard Nixon. O maior escândalo de corrupção dos Estados Unidos, o caso Watergate, começou ainda em 1972, quando um grupo de republicanos foi apanhado em flagrante a colocar escutas na sede dos democratas. Foi o início do fim da presidência de Nixon. Pouco antes, Michael Jackson dava início a uma carreira que o tornou no rei da música pop. O seu primeiro álbum a solo, Got to Be There, foi gravado em 1971 e lançado no ano seguinte, despertando o planeta para um novo padrão musical. As discotecas e o estilo punk emanaram de uma cultura que começava a preferir o ritmo às palavras. Entrou-se na era do descartável e do efémero fazendo jus ao presságio de Andy Warhol: “No futuro todos serão famosos, por 15 minutos”. Assim se começava a assistir à rutura dos paradigmas e dos dogmas. Pela primeira vez, em mais de 400 anos, o Vaticano elegeu o primeiro sumo pontífice não italiano. João Paulo II, nascido Karol Jozef Wojtyla na Polónia, eleito a 16 de Outubro de 1978, foi um dos Papas mais carismáticos da história moderna da Igreja Católica, sobretudo por ter estreitado os laços entre as várias religiões. O seu papel foi de tal forma relevante que foi canonizado em 2014.
A tecnologia explodiu no início da década de 70. Os maiores gigantes da indústria informática surgiram com apenas um ano de diferença e revolucionaram o setor até aos nossos dias. A Microsoft surgiu em 1975 pela mão de Bill Gates e Paul Allen e a Apple foi
fundada a 1de Abril de 1976 por Steve Jobs e Steve Wozniac. PCs e Mac’s lutam pela hegemonia desde então. Juntas revolucionaram o sector de hardware e software.
Esta também foi a década do aparecimento das disquetes, das calculadoras de bolso e do revolucionário VHS, lançado pela JVC em 1976. No entanto, o icónico Walkman da Sony, nascido em Julho de 1979, foi um dos grandes marcos da tecnologia no campo da música. Os amantes da música passaram a poder andar com a sua música preferida nos ouvidos em qualquer lugar e em qualquer circunstância.
Se foi uma década recheada de sucessos, não foi isenta de grandes perdas. O mundo da música e do espetáculo ficou muito mais pobre que a morte de três grandes vultos do panorama artístico. Um dos maiores guitarristas de sempre, Jimi Hendrix, perdeu a vida com apenas 27 anos, a 18 de Setembro de 1970. Esta década ficou, ainda, marcada pela morte do rei do rock’n’roll, Elvis Presley, que foi encontrado morto a 16 de Agosto de 1977. Ano em que se perdeu um dos maiores símbolos do cinema moderno, Charlie Chaplin deixou de fazer rir o mundo com o seu personagem Charlot aos 88 anos, para trás ficou um imenso legado para os amantes da comédia. Mas este também foi o ano em que nasceu a saga Star Wars criada por George Lucas. O primeiro filme estreou a 25 de Maio de 1977, foi apenas o primeiro de três trilogias cujo último filme estreou em 2019, entre prequelas e sequelas.
No desporto, começavam a surgir os primeiros fenómenos, o nadador americano Mark Spitz conquistou sete medalhas de ouro nos Jogos Olímpicos de Munique, em 1972, um feito só superado em 2008 por Michael Phelps ao conquistar oito medalhas de ouro. Mas apesar da conquista histórica, foi o atentado de 5 de Setembro que marcaria esta edição dos Jogos Olímpicos para sempre. O grupo terrorista palestiniano, denominado Setembro Negro, atacou a delegação israelita e ensombrou o evento desportivo ao provocar 17 mortes. A tragédia marcou para sempre os Jogos Olímpicos, mas os feitos continuaram a suceder-se. A romena Nadia Comaneci, em 1976, foi a primeira ginasta a alcançar um “dez perfeito” pela sua demonstração. Tinha apenas 14 anos e os jurados e mundo rendeu-se às suas voltas e reviravoltas no tapete e nas barras.
Na medicina surgiam, também, inovações incomparáveis: A 25 de Julho de 1978, Louise Joy Brown nasceu em Inglaterra em resultando da primeira fecundação in vitro alguma vez concretizada.
Assistia-se ao início de uma nova era na medicina reprodutiva com a primeira bebé proveta. Um procedimento que, à época, gerou controvérsia, mas que com a evolução da medicina e, sobretudo, da mentalidade, se tornou um tratamento recorrente para combater a infertilidade.
Endoscópio flexível Os aparelhos flexíveis trouxeram um maior potencial de diagnístico das doenças do foro gastrointestinal
Ainda assim, quem quisesse ser polícia teria de obedecer a critérios mais ou menos objetivos: além da óbvia maioridade e limpeza do registo criminal, teria de ter um menos óbvio comportamento moral e civil irrepreensível. E apesar das mulheres se querem pequeninas como a sardinha, na polícia tinham de ter mais de 1,55m de altura. Nestes anos, para se sair do país era necessário ter uma autorização militar.
A modernidade começa a chegar por várias vias e em 1973 arranca a primeira edição do Jornal Expresso. À frente dos destinos do semanário estiveram Marcelo Rebelo de Sousa, Francisco Pinto Balsemão e Augusto de Carvalho. O jornal haveria de se tornar uma referência, sobretudo com o fim da censura. Depois de se ouvir o Grândola Vila Morena na rádio muito mudou em Portugal. Os anos quentes e o fim da Guerra Colonial foram um prenúncio do que estava por vir e do que haveria de mudar. O cerco ao Quartel do Carmo trouxe Portugal para a rua. Seguiram-se dias de incerteza e entre Abril e Novembro de 1974 surgiram também cerca de 50 novos partidos. A maioria havia de capitular à mesma velocidade a que haviam surgido.
O Sr. Contente e o Sr. Feliz, Nicolau Breyner e Herman José, fazem rir os portugueses que vivem na incerteza do futuro político do país que é confrontado com o Processo Revolucionário em Curso (PREC). Era a liberdade a atropelar-se a si mesma. Todos queriam ser mais livres e nem os casamentos aguentaram a ditadura católica.
O que Deus havia unido, passou a ser passível de ser desunido e o divórcio chegou em força à sociedade portuguesa. No ano em que foi permitido, aconteceram 1.552 divórcios, número que triplicou no ano seguinte.
Ainda assim, havia quem apostasse no “até que a morte nos
separe”, foi esse o lema que ditou a história de amor entre Snu Abecassis e Francisco Sá Carneiro que começou em 1976.
Eram ambos casados, um escândalo para a época. Ela divorciou-se, ele nunca chegou a fazê-lo por imposição da mulher com quem tinha casado. A história trágica de amor acabou com a queda do avião em que ambos seguiam, no início da década de 80.
Corria o ano de 1976 quando Carlos Lopes que conquistou a glória e a medalha de prata nos 10 mil metros nos Jogos Olímpicos de Montreal pondo, assim, fim aos 16 anos de jejum olímpico português. É o insólito a sobrepor-se a tudo aquilo que ficou por acontecer até então, porque a ditadura era castradora. Tão castradora que só em 1977 começaram a surgir as primeiras telenovelas brasileiras em Portugal. Gabriela, a do Cravo e Canela, conquistou o povo português que não perdia pitada. Mário Soares, assumiu-se como fã, Álvaro Cunhal terá, alegadamente, chegado atrasado a uma gravação da RTP porque teria ficado a assistir a um episódio e conta-se que no dia do grande final, os trabalhos da Assembleia da República terão sido interrompidos a tempo de assistir aos desígnios finais dos personagens. Foi nesta década que Amália Rodrigues levou o fado para fora de fronteiras lusas e o internacionalizou atingindo o apogeu da sua carreira que haveria de se prolongar por duas décadas.
A vaca Cornélia e a Coca-Cola chegam no final da década a Portugal e conquistam, ambas, os portugueses. A primeira consagra o talento de Raúl Solnado, a segunda é símbolo de liberdade. Uma liberdade que é cara aos portugueses e a um país recheado de estatísticas que retratam uma realidade indelével. Senão veja-se: Em 1970, 1.795.210 pessoas eram analfabetas em Portugal , sendo que mais de um milhão eram do sexo feminino.
Os números são ainda mais reveladores se se colocar esse valor em percentagem, em 1970 cerca de 25% da população portuguesa não sabia ler, nem escrever.
De acordo com o INE, nesse mesmo ano terão morrido 6.985 pessoas com doenças do foro digestivo, a maioria com gastrites, colites e cirroses hepáticas. Outro dado relevante é o número de tumores neste mesmo ano, dos 10.935 que morreram com cancro, 4.554 padeceram com tumores no esófago, estômago, intestinos e reto. No final da década, em 1979, o número de óbitos por doenças do aparelho digestivo foi de 5.812 pessoas. Entre 1970 e 1979, o número de médicos evoluiu de uma forma muito favorável. Se em 1970 existiam cerca de 8.156, em 1979 os dados do INE indicam que existiam 18.088 médicos. Em 1970, existiam 634 unidades hospitalares, entre as públicas e as privadas. Estes dados são reveladores do peso que esta especialidade já detinha à época.
A saúde do Portugal rural pré-25 de Abril
Para chegar aos doentes das aldeias longínquas desse Portugal além do rural, os médicos percorriam quilómetros a pé ou a cavalo. Subiam montes, desciam as encostas. As condições de vida dos doentes eram precárias e os incómodos ao médico pagavam-se com porcos, galinhas, perus ou enchidos. Quem vivia longe das grandes cidades, dependia do trabalho no campo, sobrevivia à mercê do que a terra lhe dava. Não faltava apenas literacia no Portugal rural até à década de 60, faltava saneamento básico e água canalizada, faltava notícias, faltava mundo.
Aquilo que chegava era através das telefonias ou de jornais partilhados que já vinham fora de tempo. A vida acontecia devagar e tudo chegava atrasado no tempo ao interior do país.
Algumas cidades de maior dimensão dispunham de pequenos hospitais das Misericórdias, mas a maior parte continuava dependente dos poderes terapêuticos da canja de galinha, das gemadas e do mel e, também, da caridade alheia. Nas vilas e aldeias onde existia um consultório médico, a prática da medicina era dificultada pela ausência de meios de diagnóstico adequados. Apesar de alguns estarem equipados com aparelhos de radioscopia, os médicos baseavam os seus diagnósticos, sobretudo, em elementos de ordem clínica. Na ausência de ambulâncias, eram os burros a transportar os doentes até aos consultórios médicos existentes. À falta destes, encontravam-se soluções para as maleitas nas práticas populares.
As bronquites e pneumonias eram tratadas com ventosas, cataplasmas de linhaça e papas de mostarda. As gripes melhorariam com fricções de álcool, aguardante e seiva de pinheiro, café com aguardente e chá. A sarna tratava-se com enxofre. O sarampo melhorava-se às escuras e com panejamentos vermelhos. No cordão umbilical dos recém-nascidos, para conter as hemorragias, aplicava-se cinza, teias de aranha, mel e estrume. As sopas de cavalo cansado ao pequeno almoço fortaleciam o sistema imunitário. As queixas gástricas tratavam-se, geralmente, com leite e recomendava-se a compra de uma cabra para o efeito. Para os que sofriam tromboses cerebrais ou enfartes do miocárdio havia poucas esperanças e lá se ouvia a famosa frase que vaticinava o seu destino: “foi um ar que lhe deu”. À falta de médicos, era o barbeiro a arrancar os dentes, o ferreiro a cauterizar o “nervo da orelha” e aliviar as dores da ciática, e o endireita a corrigir os problemas de dores variadas. Estes muitas vezes eram os pastores e compunham as cabras e as ovelhas quando havia fraturas e aplicam estas mesmas técnicas aos humanos. Enquanto as zonas interiores e rurais estavam votadas ao abandono e à sorte da caridade, as cidades como Lisboa, Porto e Coimbra começavam a evoluir e a seguir as tendências mundiais. Muitos clínicos partiam para o estrangeiro para fazer os seus estágios e quando regressavam tentavam transpor aquilo que tinham aprendido para os hospitais portugueses, ainda que fosse clara a falta de meios e de condições de salubridade para que implementassem tudo o que tinham aprendido.
Ainda que timidamente, começaram a surgir as noções de assistência à doença e da assistência social. Até então esta assistência era prestada apenas pelos hospitais da Misericórdia e pelos três hospitais centrais do país: São José e Anexos na capital, Joaquim Urbano no Porto e nos Hospitais da Universidade em Coimbra.
Neste cenário, o Estado ainda se demitia das suas funções neste campo e a iniciativa privada dominava. Assim, em 1933 surgiram as Caixas de Previdência das Casas do Povo, em 1937 as Casas dos Pescadores e, finalmente, em 1945 foi criado o Estatuto da Assistência Social e Organização da Assistência Social através da Reforma Trigo de Negreiros. Em 1946 as Caixas de Previdências que já existiam uniram-se para formar as Caixas de Previdência e dos Serviços Médico-Sociais e assim surgiram os Postos das Caixas, onde eram prestados os serviços médicos. Releva salientar que, nesta fase, os custos dos tratamentos médicos eram pagos pelas entidades patronais e pelos beneficiários. Efetivamente começou a haver mais cuidados médicos, mas não se tratava de um direito universal à saúde. Este tardava a chegar, sobretudo aos mais desfavorecidos e aos indigentes.
A Lei de Bases da Organização Hospitalar, datada de 1946, deu um forte contributo para desenvolver a saúde no interior do país ao estabelecer um plano de construção de hospitais regionais e sub-regionais. Em 1947, foram construídos 12 hospitais, quatro anos depois, estavam mais 25 hospitais em construção. Preconizava-se, assim, a era da regionalização hospitalar em que se dividam os hospitais por concelhos, distritos e zonas.
Outro forte contributo para a melhoria dos cuidados de saúde, foi o Relatório Sobre as Carreiras Médicas, elaborado pela Ordem dos Médicos em 1961. Ao reportar a situação da saúde em Portugal e ao sugerir uma reforma profunda no setor da saúde, este relatório desenhou as bases do que viria a ser o Serviço Nacional de Saúde de modo a pôr fim aos cinco setores distintos onde se exercia medicina: Saúde Pública, Serviços Médico-Sociais das Caixas, Assistências, Hospitais e Clínica Livre.
Havia, nessa época, situações paradoxais que travavam o avanço da medicina e a sua expansão para fora das principais cidades. Havia médicos sem trabalho e pessoas a precisar de assistência sem ter acesso a médicos. Urgia criar condições. Ao fomentar as Carreiras Médicas, a Ordem dos Médicos pretendia a promoção científica e social dos médicos a par da reforma dos serviços. Ao longo da década de 70, a saúde em Portugal foi combatendo a fragmentação e consolidando a prestação de cuidados médicos. A reforma Gonçalves Ferreira, em 1971 promoveu a carreira médica à escala nacional e criou os Centros de Saúde, num preâmbulo do que viria mais tarde a ser a rede de cuidados de saúde primários. Faltava apenas agregar todas estas reformas num único sistema de saúde. Essa congregação era fundamental num país em que, em 1970, a despesa com a saúde era de 2,8% do PIB, e em que apenas 86% dos portugueses estavam abrangi- dos por sistemas de saúde.
A personalização da especialidade
Foi neste contexto que a Gastrenterologia encontrou lugar nos hospitais portugueses.
Se os anos 60 foram os anos da fundação da especialidade em terras lusas, os anos 70 surgiram como os anos da emancipação das valências integradoras, nomeadamente da Medicina Interna. Era a independência a chegar à Gastrenterologia, que se impôs como uma especialidade autónoma e independente.
As técnicas de Endoscopia foram evoluindo. Conta Diniz de Freitas que foi na década de 70 que começaram a surgir os serviços autónomos de Gastrenterologia, nomeadamente em Coimbra. A Endoscopia trouxe um admirável mundo novo para a saúde em Portugal. Se até então a Endoscopia servia o propósito do diagnóstico, a partir de então deu-se início a uma nova era: a da terapêutica.
Se até então a Endoscopia servia o propósito do diagnóstico, a partir de então deu-se início a uma nova era: a da terapêutica
O tubo digestivo passou a contar com esta técnica inovadora no diagnóstico das doenças do foro digestivo.
Voltemos atrás na história para perceber que a história da Gastrenterologia é, em grande parte, fruto da evolução tecnológica. Esta especialidade médica funda-se na capacidade de observação dos órgãos do corpo humano e os instrumentos que atualmente se utilizam para diagnosticar e tratar doenças do foro gastrointestinal são o resultado de 200 anos de evolução tecnológica. A história da Endoscopia Digestiva pode ser contada como todas as restantes histórias: por períodos de desenvolvimento distintos. Se entre 1809 e 1932 se fez uso da endoscopia rígida para observar, a partir de
1932 a forma de ver uma estrutura que não é rígida ganhou fluidez com a introdução da endoscopia semiflexível. Trata-se de uma grande evolução que contribuiu sobremaneira para a evolução dos diagnósticos.
Enquanto a endoscopia era rígida permaneciam obstáculos inultrapassáveis. Eram eles a falta de luz e a não linearidade do aparelho gastrointestinal. Para combater estes obstáculos era necessário introduzir luz. A história da primeira esofagoscopia, tal como a conhecemos hoje, é bastante curiosa sobretudo porque aconteceu graças a um engolidor de espadas profissional.
O alemão Adolf Kussmaul juntou-se ao francês Antonin Desormeaux e juntos criaram um instrumento capaz de observar o esófago que funcionava a gasolina e era composto por espelhos que devolviam a imagem, ainda que de uma forma bastante tosca. Foi criado em 1868 e tratava-se de um tubo rígido com 47 centímetros de comprimento e 13 milímetros de diâmetro. Para perceberem o sucesso da sua invenção pediram ajuda a um engolidor de espadas que até conseguiu tolerar bem a introdução deste aparelho. O hábito até assentou bem ao monge, no entanto, apesar da boa vontade do engolidor de espadas, Kussmaul percebeu que continuava a ter uma visibilidade escassa devido à fraca iluminação do instrumento.
A invenção da lâmpada por Thomas Edison, em 1879, contribuiu
decisivamente para a evolução da Endoscopia. Os anos que se seguiram a esta descoberta revolucionária permitiram melhorar a iluminação, mas também melhorar a forma do tubo e a articulação das lentes. A rigidez era outro dos grandes obstáculos a ultrapassar. Georg Wolf e Rudolph Schindler revolucionaram a história da Endoscopia ao criar, em 1932, o primeiro endoscópio parcialmente flexível. Tratava-se de um aparelho composto por uma parte rígida, desde a cavidade oral até ao esófago distal e, posteriormente, com uma parte flexível. Começava assim uma nova era, a da endoscopia semiflexível, que duraria até 1958. Ao longo destes anos, trabalhou-se, sobretudo, nas lentes e nas luzes comportáveis pelo tubo. A realidade é que a luz se perdia ao passar pelas várias lentes. Os esforços para aumentar a quantidade de luz resultaram em acidentes particularmente alarmantes.
O aumento do rendimento da luz na extremidade distal do tubo provocara queimaduras gástricas nos pacientes. Por esta época, permaneciam muitas áreas cegas, não se conseguia (ainda) chegar ao duodeno, nem fazer biópsias. O advento da fibra ótica foi determinante para a evolução da Endoscopia e um marco para a Gastrenterologia. A fibra ótica permitiu desenvolver endoscópios flexíveis, capazes de incorporar fontes de luz e sensores que transmitem as imagens para ecrãs.
A endoscopia deixou de ser limitada à observação e passou a ser proativa e capaz de procedimentos terapêuticos e diagnósticos, como por exemplo, a recolha de tecidos para estudos posteriores (biópsias) ou a remoção de estruturas salientes do revestimento dos órgãos digestivos, conhecidos como pólipos. O início dos anos 70, na área da Gastrenterologia, ficou intrinsecamente marcado por esta inovação. As técnicas endoscópicas começaram a substituir alguns procedimentos cirúrgicos.
A apresentação da fibroscopia ótica ocorreu em Janeiro de 1954, em dois artigos publicados na revista Nature. Deve-se a Basil
Hirschowitz o desenvolvimento do protótipo do primeiro gastrofibroscópio. Aliás, este terá usado a sua invenção para estudar o seu próprio estômago e só posteriormente o terá usado no de um paciente. Os resultados foram de tal forma satisfatórios que o aparelho foi lançado para o mercado ainda em 1960. Este ainda era muito diferente dos endoscópios que se usam atualmente, mas a realidade é que foi a partir do aparelho criado por Hirschowitz que se desenvolveram os endoscópios modernos. Sucederam-se vários anos de evolução aliados, sobretudo, à indústria japonesa e às grandes marcas que investiram nesta área como a Olympus, a Pentax ou a Fujinon.
O ano de 1970 ficou marcado pelo lançamento do modelo Olympus EF Tipo B, um instrumento suficientemente longo para chegar até ao duodeno tendo, também, dois comandos capazes de movimentar a extremidade flexível e, dessa forma, realizar biópsias dirigidas. A inovação está longe de ter terminado por aqui, a era mais recente da Endoscopia assenta nas endoscopias eletrónicas e em novas técnicas como as cápsulas de observação, mas ambas serão abordadas mais adiante.
Os médicos portugueses iam acompanhando este desenvolvimento e fazendo a especialidade crescer à medida que as tecnologias chegavam aos serviços hospitalares. Apesar da já referida letargia,
em apenas dois anos, João Castel-Branco da Silveira evoluiu das endoscopias rígidas para as flexíveis e de fibra ótica. Esta foi uma década revolucionária para a medicina portuguesa, nomeadamente, pelas técnicas de diagnóstico que surgiram. Recorda este médico o deslumbramento que sentiu quando assistiu, pela primeira vez, à utilização da ecografia na Obstetrícia. Era o admirável mundo novo e a revolução do estudo da patologia abdominal. “Em meados da década de 70 surgem duas técnicas que vêm revolucionar por completo o diagnóstico em medicina: a endoscopia flexível e a ecografia por ultrassons. Era possível, pela primeira vez, ver os órgãos maciços, nomeadamente o fígado, o baço e os rins sem ser por métodos radiológicos”, recorda João Castel-Branco da Silveira.
“Em meados da década de 70 surgem duas técnicas que vêm revolucionar por completo o diagnóstico em medicina: a endoscopia flexível e a ecografia”
Com a introdução destes dois meios de diagnóstico, mudou tudo na medicina em geral, e na Gastrenterologia em particular. Conta este decano, que se pôs fim ao método da “esperoterapia” e se começou a reduzir acentuadamente os tempos de internamento hospitalar.
Os doentes eram internados e iam sendo avaliados à medida que os sintomas iam surgindo e os sinais clínicos eram evidentes.
“Estas técnicas vieram revolucionar a postura médica na patologia abdominal. Com a fibra ótica deixou de ser só o tubo digestivo e passou a ser também as vias biliares e pancreáticas”, recorda o médico gastrenterologista. Começava a ser evidente a importância do diagnóstico precoce das doenças do foro gastrointestinal e percebeu-se que era impossível cingir estas técnicas apenas aos
hospitais centrais. O pós-25 de Abril também trouxe liberdade aos médicos permitindo que fossem destacados como consultores para hospitais periféricos. Foi assim que João Castel-Branco da Silveira desenvolveu o serviço de Gastrenterologia no Hospital de Vila Franca de Xira. Foi neste hospital que, em 1977, surgiu o primeiro endoscópio de fibra ótica fora dos hospitais centrais. Em 1979, implementou a mesma técnica nos Hospital de Caste- lo Branco. “A partir de Abril de 1979 ia a Castelo Branco uma vez por mês fazer consulta, endoscopia alta e fibrosigmoidoscopia”.
A criação dos serviços de Gastrenterologia evoluiu de forma distinta em Lisboa, Porto e Coimbra. Conta Leopoldo Matos a situação particular de Lisboa onde, em 1977, no Hospital de Santa Maria havia quatro serviços de Medicina Interna e nenhum de Cardiologia, Endocrinologia ou Gastrenterologia.
A separação acontecia conforme havia afirmação tecnológica das especialidades. “Em Coimbra durante os anos 70, já havia a unidade de Gastrenterologia que já não estava incluída na Medicina [Interna]. No Porto, havia uma unidade de Gastrenterologia com o Professor Tomé Ribeiro, incluída em Serviço de Medicina Interna, mas já com a figura do gastrenterologista”, recorda Leopoldo Matos.
Assim foram surgindo serviços autónomos de Gastrenterologia que se foram espalhando pelos hospitais distritais à medida que a saúde se foi tornado acessível a cada vez mais cidadãos. Para isso também teve um papel decisivo a fundação, em 1979, da Sociedade Portuguesa de Endoscopia Digestiva (SPED) e o surgimento do Serviço Nacional de Saúde que aproximou as técnicas e os especialistas da população mais distante das grandes cidades.
A democratização da Saúde em Portugal
O Serviço Nacional de Saúde (SNS) surge como o filho primogénito da revolução de Abril. Com este sistema de saúde, a democracia chegou à saúde e tornou-se mais próxima da população. O SNS nasceu esperançoso, cresceu pródigo e atingiu os 40 anos em 2019 ante uma perspetiva muito positiva daquilo que tem sido a evolução dos cuidados de saúde em Portugal. No ano de 2000 o SNS viria a ser considerado o 12º melhor do Mundo.
Entre a revolução e a criação do SNS alargou-se o âmbito da saúde. O primeiro passo para o alargamento foi o despacho ministerial de 23 de Junho de 1975, que criou o Serviço Médico à Periferia.
O Serviço Nacional de Saúde democratizou a saúde em Portugal, tornando-se universal e tendencialmente gratuita
Esta foi a solução encontrada pelo Governo para combater as desigualdades de acesso aos cuidados de saúde, mas também para dar resposta a um problema emergente: todos os anos eram formados milhares de médicos que tinham o direito a ingressar na carreira hospitalar. Assim, o que foi implementado que os jovens que pretendessem ingressar na referida carreira hospitalar teriam de cumprir um ano de serviço na periferia. O que se pretendia era, não só dinamizar os serviços médicos no interior do país, mas também ganhar tempo no ingresso destes nos hospitais onde já havia muitos médicos.
Em 1976, cerca de 90% das unidades e profissionais de saúde estavam localizados no litoral do país e 80% destes estavam em Lisboa, Porto e Coimbra.
A partir deste ano e com o plano de Serviço Médico à Periferia a decorrer, assistiu-se à distribuição dos novos médicos pelas cidades
e vilas do interior do país. Assim aconteceu o confronto entre jovens licenciados citadinos, repletos de conhecimentos teóricos e prática muito limitada e uma população com escassos conhecimentos sobre o que a medicina poderia fazer para lhes melhorar as condições de vida e curar os males que os atormentavam, alguns desde sempre. Os jovens médicos tinham, assim, contacto com o lado humano da sua profissão e com a população do interior. Muitas destas pessoas não só nunca tinham ido ao médico como também desconfiavam das capacidades da medicina.
O artigo 64º do capítulo dedicado aos Direitos e Deveres Sociais da primeira Constituição da República pós-25 de Abril decretava que todas as pessoas passariam a ter o direito à proteção da saúde e o direito de a defender e promover, bem como que este direito à proteção da saúde ocorreria pela criação de um Serviço Nacional de Saúde que seria universal, geral e tendencialmente gratuito.
Assim se comprometia o Estado a cuidar dos seus, por igual. Os portugueses, cada vez mais esclarecidos, vigilantes e, agora, com o direito a dar abertamente a sua opinião, esperavam que a “promessa” se cumprisse.
Com a formação do II Governo Constitucional, em 1976, e com Mário Soares a assumir a liderança dos destinos do país, surgiu o nome de um advogado de Coimbra que revelava o espírito de iniciativa de que o país tanto precisava. António Arnaut foi convidado para assumir a pasta da Justiça, começando de imediato a preparar um es- boço para um Serviço Nacional de Justiça. Quando Ramalho Eanes vetou o seu nome para a pasta da Justiça, Mário Soares ofereceu-lhe a pasta do Ministério dos Assuntos
Sociais onde começou, de imediato, a desenhar o esboço para um serviço nacional, desta vez, de saúde.
A sua proposta encontrou oposição dentro e fora do governo em funções. Conta A.J. Barros Veloso em Médicos e Sociedade – Para uma História da Medicina em Portugal Durante o Século XX, uma conversa que terá alegadamente decorrido entre António Arnaut e Vítor Constâncio. Conta-se neste livro que à pergunta de Vítor Constâncio “Ó Arnaut, então vais publicar uma coisa destas? Já fizeste as contas ao que vai custar?”, António Arnaut terá respondido: “As contas fazes tu Constâncio, que és o Ministro das Finanças”.
Em 1979 foi fundada a Sociedade Portuguesa de Endoscopia Digestiva (SPED) O Dr. António Catita foi o primeiro presidente desta sociedade