Portugal vivia em paz, depois de ter vivido em revolução. Arrefecida a política e em plena era da democracia, era evidente que o país estava a descobrir o Mundo de olhos bem abertos.
Estes foram os anos em que as crianças adormeciam ao embalo do Vitinho, mas também foram os anos da chegada do Multibanco (em 1985) e da lengalenga do Verde-Código-Verde.
A década começou em choque com a queda do avião onde seguiam Sá Carneiro e Snu Abecassis. Era o fim trágico da sua história de amor e o início de todas as teorias que começam sempre com a mesma interrogação: Acidente ou atentado? Até à data, o debate continua entre teorias da conspiração e certezas baseadas na ciência absoluta. Enquanto o debate se fazia, a música de fundo que se ia ouvindo na rádio mudava radicalmente. O Chico Fininho, de Rui Veloso, surgiu em 1980 e inaugurou o palco das novidades. Se este single determinou que o artista nortenho era o pai do rock, não tardaram a surgir outras bandas icónicas como os Xutos e Pontapés (1981). Por Lisboa proliferavam os bairros de lata, resultado da emigração massiva de pessoas oriundas das ex-colónias. Em redor da capital existiam 98 “bairros de barracas” onde viviam cerca de 100 mil pessoas. A falta de condições de higiene e de salubridade contribuíram para a propagação de doenças infetocontagiosas. No ano de 1980 haveria 505 habitantes por cada médico e 441 habitantes por cada enfermeiro, o país contava com a experiência de 19.332 médicos, dos quais 5.926 eram mulheres. As especialidades começavam a multiplicar-se e contavam-se 137 gastrenterologistas em todo o país, sendo que a maioria continuava a exercer a especialidade nas grandes cidades.
Neste ano, havia 22 gastrenterologistas em Coimbra, 76 em Lisboa e 30 no Porto. Contas feitas, havia 9 gastrenterologistas espalhados pelo resto do país. Portugal contava com 6.560 estabelecimentos de saúde, existindo 36 serviços a prestar consulta externa de gastrenterologia. Nesse ano, morreram 3.331 pessoas com tumores nos órgãos do aparelho digestivo e do peritoneu, a maioria (1.136) dos tumores localizados no estômago.
Foi precisamente pelo estômago que Maria de Lourdes Modesto conquistou os portugueses. O livro Cozinha Tradicional Portuguesa foi lançado a 15 de Janeiro de 1982 e tornou-se na bíblia da cozinha portuguesa. Uma casa portuguesa, com certeza que tinha esta obra nas prateleiras da cozinha. Foram vendidos mais de 400 mil exemplares desta obra icónica dos anos 80. Tão icónica como a que foi deixada no campo da música por António Variações. O single Toma Lá o Comprimido, apresentado no Passeio dos Alegres de Júlio Isidro, marcou o início da carreira musical do barbeiro que tinha nascido para a música. Com uma imagem excêntrica e muito à frente dos anos 80 desta Lisboa ainda descolorida, António Variações foi um fenómeno que explodiu tão rápido como implodiu. A genialidade musical foi interrompida pela doença da década. Infetado com o vírus da recém-descoberta Sida, acabou por sucumbir a uma infeção respiratória, em 1984. António Variações foi apenas precoce, mas abriu caminho para uma liberdade difícil no Portugal da época, a liberdade sexual tardava a chegar num país onde predominada a moral e os bons costumes. A Sida ganhava, assim, um rosto em Portugal.
Enquanto a economia Portuguesa lutava por se manter estável face às exigências do FMI, Dona Branca, a Banqueira do Povo, prometia aos portugueses juros milagrosos.
Detida em Outubro de 1984, Maria Branca dos Santos enganou centenas de pessoas que lhe confiaram as poupanças de uma vida. Estes foram anos árduos para Portugal que ambicionava entrar na CEE. Foram necessários oito anos de espera, desde o pedido de adesão até à assinatura do tratado a 12 de Junho de 1985.
A provar que os contos de fadas existem, Diana Spencer e o Príncipe Carlos casaram a 29 de Julho de 1981 numa cerimónia que contou com uma das maiores audiências televisivas de sempre. Cerca de 750 milhões de pessoas assistiram à boda real que foi transmitida nos quatro cantos do mundo. O icónico vestido de tafetá da noiva, com uma cauda de quase oito metros de comprimento e mais de 10 mil pérolas, causou um suspiro à escala mundial. Uma história repleta de príncipes, princesas, carruagens e diamantes. Uma história que alguns anos mais tarde, já na década de 90 haveria de chegar ao fim de uma forma tão mediática quanto triste.
De acordo com o INE, em 1980, em Portugal, aconteceram 72.164 casamentos e 5.843 divórcios. Vale a pena perceber as estatísticas médicas da época e a forma como a gastrenterologia se posicionava
em Portugal. No final da década, em 1989, as estatísticas espelham uma realidade não muito distante, mas naturalmente, evolutiva. Contavam-se 27.608 médicos, dos quais 10.791 eram do sexo feminino. O número de especialistas em gastrenterologia era de 187. Existiam, em 1989, 239 estabelecimentos de saúde no país. Neste ano nasceram 114.392 crianças, das quais 18.869 nasceram de cesariana. Aconteceram ainda 5.702.048 urgências, um número bastante próximo do de consultas externas nos hospitais, que foi de 5.105.486. De forma a ter uma noção comparativa, releva referir que nesse mesmo ano foram realizadas cerca de 28 milhões de análises clínicas, 3,8 milhões de exames radiológicos, 576 mil eletrocardiogramas, 257 mil exames anatomopatológicos, sendo seguidos pelos já referidos exames endoscópios.
Hepatite C e Helicobacter Pylori, uma revolução da gastrenterologia
A década de 80, na Gastrenterologia é marcada por uma epidemia silenciosa, a Hepatite. No Verão de 1981, os casos de hepatite, provavelmente A, no Hospital de Cascais sucedem-se.
Os sintomas são sempre os mesmos: fadiga, náuseas, desconforto abdominal, falta de apetite e urina escura. A pergunta que se impõe ante tais sintomas é: foi à praia? E a resposta era, irremediavelmente, afirmativa. O sistema de saneamento dos esgotos é pouco eficaz, insuficiente e está a destruir a qualidade das praias da linha do Estoril. Na época fala-se em surto, as autoridades sanitárias negam, mas 1981 é o primeiro ano, desde 1975, em que se recolhem amostras para testar a qualidade da água. Os resultados não são divulgados, mas sabe-se que a qualidade está a piorar. Em 1983, a quantidade de coliformes fecais na Praia de Santo Amaro é 35 vezes superior ao máximo permitido. Estala a polémica quando Francisco Sousa Tavares, Ministro da Qualidade de Vida, afirma que as praias da Linha deviam ser interditas a banhos. Em 1987, a Praia dos Pescadores, em Cascais registava níveis de poluição 120 vezes superiores aos valores indicados pela CEE.
A história das hepatites virais é tão antiga quanto a civilização. Ninguém saberá quando terão surgido os primeiros casos. Mas, quando aconteceu, teve início um ciclo natural e repetitivo capaz de infetar milhões de seres humanos. Há mais de cinco mil anos que a literatura chinesa tem relatos de icterícia entre a sua população. Também na Babilónia há relatos semelhantes nas placas com escrita cuneiforme, com cerca de 2500 anos.
Terá sido Hipócrates, que viveu 300 a 400 anos antes de Cristo, a levantar a hipótese de a icterícia ter uma origem infeciosa e cuja origem poderia estar no fígado. Esta hipótese viral ganhou mais sentido no ano de 752 onde há relatos de um surto de icterícia contagiosa na cidade alemã de Mainz. À época, foi recomendado aos habitantes contagiados que permanecessem em quarentena para evitar a propagação da doença. Os relatos perdem-se no tempo, mas a denominação de hepatite surgiu pela primeira vez em 1725 num trabalho científico publicado por Bianchi JB denominado
História Hepatica Sem Thoria et Práxis Omnius Morborum Hepatitis Et Bilis.
Em 1895 foi documentada a existência de uma forma de hepatite provavelmente transmitida por via parenteral quando 191 dos 1289 dos trabalhadores do porto de Bremen, na Alemanha, que foram vacinados contra a varíola começaram a apresentar um quadro clínico compatível com a icterícia entre dois e oito meses após a toma da referida vacina. Entre os principais sintomas os pacientes queixavam-se de fadiga, anorexia, queixas digestivas e prurido cutâneo. A correlação com a toma da vacina parecia óbvia uma vez que a doença não foi detetada entre os trabalhadores vacinados fora do estaleiro, nem entre os não vacinados. Parecia assim haver uma explicação clara para o surto.
Ao longo dos séculos foram sendo conhecidos episódios semelhantes, nomeadamente, nas grandes guerras onde faltava higiene e cuidados médicos aos soldados. Se durante a Primeira Grande Guerra a hepatite A acometeu milhares de soldados, durante a Segunda Guerra Mundial estima-se que cerca de 15 milhões de pessoas terão contraído hepatite aguda de provável transmissão fecal-oral.
A investigação feita à época estabeleceu diferenças epidemio- lógicas entre a hepatite infeciosa e a icterícia por soro homologo, introduzindo-se assim os termos hepatite A e hepatite B.
Em 1989, a hepatite C surgiria após a identificação do genoma do agente viral que seria o responsável pela hepatite pós-transfusional “não-A, não-B” (NANB). As pessoas infetadas com hepatite que não era nem A, nem B tinham evidência clinica ou laboratorial de hepatite sem evidência de infeção pelos vírus A ou B.
A importância do estudo da hepatite foi de tal forma relevante para a história da Medicina que em 1976 o prémio Nobel da Medicina foi atribuído a Baruch Samuel Blumberg, conhecido como Barry Blumberg, pelo seu trabalho na área da investigação sobre a Hepatite B.
O vírus da Hepatite C foi identificado por técnicas de biologia molecular. Vários estudos realizados em chimpanzés e em pacientes que tinham hepatite “não A não B” permitiram que se estabelecesse uma correlação entre a doença e a história mais recente de transfusões sanguíneas ou com a toxicodependência. Em 1989, os cientistas concluíram que o vírus da hepatite C seria o agente infecioso responsável por mais de 95 por cento dos casos de hepatite “não A não B”. A relevância de incluir esta referência histórica na década de 80 prende-se precisamente com a importância da descoberta deste vírus. A hepatite C foi, de acordo com a visão de Rui Tato Marinho, um “espetáculo de vitórias” entre 1989 e 2014. Se os tratamentos iniciais apontavam para taxa de sucesso na ordem dos 6 por cento a eficácia aumentou como num passe de magia. Em 2014 apareceram os medicamentos orais sem efeitos secundários e com uma eficácia a rondar os 97 por cento. “Em 25 anos, o homem conseguiu descobrir o vírus, identificá-lo, arranjar testes serológicos e descobrir medicamentos”, afirma Rui Tato Marinho.
Em Portugal, as hepatites foram surgindo ao mesmo ritmo do que se passava nos países do resto do mundo, tendo sido evidente a sua correlação com a toxicodependência e com a Sida. Como refere Leopoldo Matos, “O boom da hepatite C aconteceu com o aumento da toxicodependência intravenosa no final dos anos 80. A partir de 1992 começou a fazer-se o teste a todas as dádivas e o que aconteceu foi que deixou de haver transfusões com hepatite C”. Esta foi uma área que se desenvolveu intensamente no final da década de 80 e início da década de 90. “Os estudos sobre o fígado eram sobre cirrose, cirrose alcoólica e hepatite B. A partir desta altura começou a haver uma grande estimulação científica para o estudo da hepatite C.
Como é uma doença de países ricos a indústria [farmacêutica] começou a investir bastante. A hepatologia começou a crescer porque começou a haver fundos”, refere Leopoldo Matos. Concomitantemente ao longo de uma década surgem seis doutoramentos na área da hepatite C em Portugal, metade pela mão de gastrenterologistas. A descoberta do vírus da hepatite C em 1989 e o anticorpo respectivo (anti-VHC) veio permitir fazer o diagnóstico e começar a rastrear o sangue antes das transfusões. Foi assim que se acabou com a hepatite C pós-transfusional quando em 1992 foi introduzido na rotina do sangue a transfundir.
Das 96.220 pessoas que morreram em 1989, 2 morreram por terem contraído hepatite A e 39 por terem contraído Hepatite B e 11 por Hepatite não especificada. Os números de infetados por Hepatite B em 1990 foi de 480 pessoas. As estatísticas neste campo atingiram o pico com a deteção de 1.234 novos casos em 1993, tendo regredido progressivamente até 2017, ano em que foram detetados 173 novos casos de hepatite. Para o desenvolvimento desta e de outros doenças hepáticas em muito terá contribuído o aparecimento do Núcleo de Hepatologia, em 1983, que mais tarde havia de se passar a designar Associação Portuguesa para o Estudo do Fígado.
A década de 80 foi uma época de relevo para a gastrenterologia em Portugal. Os especialistas começavam a ir mais além dos conhecimentos básicos e a gastrenterologia a ir para além de Lisboa, Porto e Coimbra. Com esta descentralização dos gastrenterologistas, descentralizou-se a gastrenterologia e os cuidados de saúde começaram a chegar a mais pessoas que viviam no interior do país.
A propósito da criação do Núcleo dos Gastrenterologistas dos Hospitais Distritais, em 1984, recorda João Castel-Branco da Silveira que à época se tinha instalado em Castelo Branco: “A ideia foi criarmos uma associação que pugnasse pela difusão da especialidade e das técnicas atendendo a que nós, os distritais, tínhamos ao nosso cuidado 75 por cento da população portuguesa e podíamos levar técnicas de ponta a essa população”.
Esta descentralização, a par da informatização dos hospitais, em 1987, permitiu a partilha de informação entre os hospitais e permitiu o desenvolvimento de protocolos de atuação globais. Na realidade, esta informatização dos hospitais permitiu que se percebesse a incidência de determinadas doenças no país, nomeadamente dos casos de hepatite e de cancro. A prestação de cuidados de proximidade, nomeadamente, ao nível dos serviços de gastroenterologia, permitiu alargar não só o conhecimento, como o combate a doenças como as hepatites e os cancros digestivos, do
esófago, estômago, colon, reto e vias biliares. Muito relevante para a criação de proximidade entre todos os Hospitais, foi o aparecimento do Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM) em 1981. Outra das descobertas de relevo da dé- cada foi a identificação de uma bactéria no ambiente ácido do estômago. Robin Warren e Barry Marshall, investigadores australianos, deram a conhecer, em 1982, que as úlceras gástricas não eram causadas apenas por stress ou má alimentação, mas que havia uma bactéria capaz de sobreviver no meio dos ácidos do estômago. A descoberta do Helicobacter Pylori foi de tal forma relevante que valeu a estes dois cientistas o prémio Nobel da Medicina, em 2005. Para além deste feito, seguiram-se cerca de 20 anos de trabalho lado a lado com a “sua” bactéria. Uma descoberta que foi recebida com espanto pela comunidade médica da década de 80, mas que abriu caminho para a diminuição do número de úlceras ao longo do tempo.
Congresso Internacional de Gastroenterologia em Portugal Este congresso foi o ponto de partida para a criação da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia
Vale a pena voltar atrás na história para contar a história desta descoberta desde o início. Na realidade, terá sido Robin Warren a descobrir a dita bactéria durante uma análise patológica gástrica feita em autópsias realizadas no Hospital Real de Perth. Pelas suas investigações concluiu que estaria associada a um processo inflamatório. Barry Marshall, que à época era um jovem investigador, acreditou na descoberta de Warren.
Acreditou com uma intensidade tal que decidiu beber um meio de cultura com Helicobacter Pylori de modo a provar que Warren
estava certo. Este ato impulsivo valeu-lhe uma valente inflamação que lhe causava dores e vómitos, mas também a validação da descoberta. Uma validação que antes de ser considerada revolucionária, foi apenas considerada tola e motivo de troça. Acreditava-se, convictamente, que o estômago era um meio estéril. Era uma verdade universal para a comunidade médica. Sabe-se, atualmente, que esta bactéria é a causa de cerca 90 por cento das úlceras do duodeno e por 80 por cento das úlceras gástricas. Em Portugal, esta descoberta teve especial importância uma vez que é dos países da europa com maior prevalência de inflamação gástrica.
Refere José Velosa que a erradicação desta bactéria “levou a uma redução drástica das úlceras e do cancro no estômago”.
Diniz de Freitas compara a gastrenterologia dos anos 80 ao período das Descobertas Marítimas, tal foi o impacto que estes anos tiveram para o desenvolvimento da especialidade: “Foi a época da consolidação da gastrenterologia como especialidade”. Foi essa consolidação que levou à realização do Congresso Internacional de Gastrenterologia em Portugal, em 1985. Uma conquista para os gastrenterologistas portugueses, mas também para a Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia. O evento recheou-se de importância pela credibilidade que os outros países começavam a dar ao que por cá se fazia, mas também porque foi a realização do congresso que permitiu reunir fundos para comprar a primeira sede, na Avenida António José de Almeida, em 1986. Salienta Carlos Sofia que, pela primeira vez, a Sociedade tinha um espaço formativo, um auditório em escada com cerca de 100 lugares.
Da arte popular ao massacre de Tiananmen
Foi nesta década que o mundo da música, perdeu um dos maiores ícones de sempre da música reggae. O jamaicano Bob Marley morreu a 11 de Maio de 1981 sucumbiu a um melanoma que já havia desenvolvido mestástases no cérebro, fígado e pulmões. Assim se perdia a voz inconfundível do rei do reggae com apenas 36 anos. Enquanto, a Jamaica chorava o seu ídolo, surgiam outros reis no panorama musical. Michael Jackson lançava o álbum Thriller a 30 de Novembro de 1982. Entretanto, Madonna emergia no panorama musical mundial. A sua carreira surgiu no início da década e explodiu em 1984 com o lançamento de Like a Virgin. Com mais de 300 milhões de discos vendidos em todo o mundo, Madonna conquistou o lugar de Rainha do Pop elevando os limites da expressão artística a patamares nunca imaginados.
Madonna provou ao mundo que a música podia ser aliada da arte performativa e criou espetáculos tão extravagantes quanto inovadores. Um dos grandes motores da indústria da música a MTV foi criada em 1981.
A inovação também chegava às telas dos cinemas, tal como os recordes de bilheteiras. O E.T. mais famoso e telegénico de todos os tempos, chegou às salas de cinema em 1982. Com o pequeno dedo iluminado em riste e a voar de bicicleta à luz da lua, a película dirigida por Steven Spielberg rendeu quase 12 milhões de dólares no fim-de-semana de estreia nos Estados Unidos.
Os movimentos artísticos desta década refletiam a realidade que se vivia. O Pós-modernismo sucedeu ao modernismo, mas foi a Arte Graffiti a imperar. Foi nos anos 80 que se reconheceu que aquilo que se fazia nas paredes não eram apenas rabiscos feitos por vandalismo. Na envolvência do hip hop, o Grafitti começou a ser encarado como uma forma de arte.
Sem qualquer arte, os martelos, as picaretas e qualquer ferramenta que partisse cimento era bem-vinda na Alemanha nos primeiros dias de Novembro de 1989. A queda do Muro de Berlim marcava o fim de uma era que havido sido dura para os alemães do lado este do país. Foram muitos os que quiseram contribuir para a queda da barreira que durava desde 1945. A unificação da Alemanha
simbolizada pela Queda do Muro marcava o início do fim da Guerra Fria que haveria de terminar com a dissolução da União Soviética. Partir o muro era rasgar com a falta de liberdade. Na China, o governo reprime essa mesma liberdade. As manifestações estudantis pró-democracia são mal recebidas pelos governantes. Os jovens pediam mais democracia e menos corrupção. Na noite de 3 para 4 de Junho de 1989, a China acabou com a manifestação que decorria há algumas semanas na Praça de Tiananmen avançando com tiros e tanques sobre os manifestantes. Foi assim que calaram os protestos dos audazes. O Partido Comunista Chinês mencionou “quase 300 mortos”, a Cruz Vermelha estimou 2.700 mortos e, mais recentemente, a embaixada britânica de Pequim referiu que o número de mortes em Tiananmen seria de quase 10 mil pessoas.
Esta foi uma década em que a morte esteve presente de uma forma totalmente diferente. Foi a década em que começaram os extremismos. John Lennon tinha passado o dia no estúdio de gravações em Nova Iorque. Ao final da tarde, tinha estado a distribuir autógrafos. Mark David Champman foi um dos contemplados com a assinatura de Lennon no álbum Double Fantasy. O homem de 25 anos era o mesmo que acabaria por assassinar John Lennon à porta da sua residência com quatro tiros. Um fanatismo comparável ao que moveu Mehmet Ali Agca, que tentou assassinar João Paulo II na Praça de São Pedro, no Vaticano, a 13 de Maio de 1981. O sumo pontífice saudava mais de 10 mil
pessoas quando se fizeram ouvir tiros vindos do meio da multidão. O agressor atentava contra o papa em nome do Islão, desde esse dia que João Paulo II se tornou devoto de Nossa Senhora de Fátima a quem atribui a sua salvação. No mesmo ano, o presidente americano Ronald Reagan também foi vítima de um atentado em Washington na mesma altura que uma misteriosa doença começava a debilitar o sistema imunitário de centenas de jovens gays e toxicodependentes. Era a Sida a surgir descontroladamente ante a incompreensão da comunidade médica, a doença foi batizada em 1982.
A descoberta de uma nova e assustadora doença
A década de 80 é indissociável do aparecimento da Sida. Surgiu como uma doença assustadora, incontrolável e, à época, inexplicável. Terá sido nos Estados Unidos, nomeadamente em Los Angeles, que se começou a perceber os contornos da Sida, ainda em 1979. O aparecimento de vários pacientes com quadros clínicos tão semelhantes quanto estranhos alertou os médicos. De súbito, estes pacientes tinham acessos de febre, diarreia, adenopatias, candidíases orais e esofágicas e pneumonias Pneumocystis.
O mais curioso era que todas estas pessoas eram homens que tinham sexo com homens, quase não tinham linfócitos T e davam sinais serológicos de infeção por citamegalovírus. Não se tratava de uma coincidência, mas antes de uma evidente doença viral desconhecida. Do outro lado do país, Nova Iorque assistia a um fenómeno semelhante. Surgiram vários quadros clínicos de imunodepressão adquirida por Pneumocystis e Toxoplasma e vários doentes com o sarcoma de Kaposi. Em 1981 existiam 180 casos diagnosticados com esta doença e em 1981, havia cerca de 200. A letalidade associada era de 40%. Começou a surgir um preconceito, de que se tratava de uma doença de gays, apesar das causas continuarem a ser misteriosas.
Uma doença de gays que também afetava toxicodependentes, hemofílicos e, curiosamente, haitianos. O mistério foi sendo desvendado com os passar dos anos, mas sempre sem certezas. Apesar das incógnitas, a suspeita recai sobre uma variação de vírus que terá infetado, ainda que sem causar doença, um chimpanzé no sudoeste dos Camarões. Este vírus terá passado para o homem através da manipulação da carne de algum dos animais infetados. O contágio teria acontecido através de feridas contaminadas pelo sangue dos chimpanzés. Entre 1910 e 1930 o vírus terá “viajado” para Kinshasa através de indígenas que estariam infetados. Esta era uma cidade em pleno desenvolvimento que atraía mão de obra de todo o mundo. A cidade cresceu e com ela cresceu a alteração dos comportamentos sociais e o turismo sexual. Uma cidade onde faltava salubridade e onde se vivia um clima pós-guerra civil que propiciava a disseminação do vírus. Com o fim da era belga no Congo, foram vários os países francófonos que enviaram especialistas para preencher as vagas administrativas e técnicas
criadas pela debandada dos colonizadores. Entre os recém-chegados terão estado cerca de 4.500 haitianos que ao regressar ao seu país de origem terão levado a doença. À época, o Haiti era visto como o paraíso do turismo sexual para homossexuais e pedófilos americanos e europeus. Consta que terá sido esta a porta de entrada da Sida nos países desenvolvidos.
A doença foi batizada nos Estados Unidos pelo Centers of Disease Control (CDC) em 1982. Acquired Immune Deficiency Syndrome (AIDS), nos países de língua latina o nome foi traduzido para Síndrome de Imuno-Deficiência Adquirida (SIDA). Por esta época, Portugal começava a abrir portas ao liberalismo e a fechar janelas aos preconceitos. Começaram a surgir os primei- ros ativistas homossexuais e o número de consumidores de drogas por via intravenosa aumentou consideravelmente. O país já não vivia arredado do Mundo e a Portugal chegam ecos do vírus que estava a perturbar a comunidade científica mundial.
A curva da Sida em Portugal tem uma pre-valência indicadora do conhecimento que se foi gerando à medida que se tornava mais conhecida. Em 1983 existia apenas 1 pessoa identificada com a doença em Portugal. De acordo com os últimos dados disponíveis, o número de novos infetados em Portugal, em 2017 era de 234. Os anos 2000 foram aqueles onde houve uma maior incidência no diagnóstico da doença. O ano em que existiram mais novos casos de Sida foi no ano 2000, em que foramidentificados 1.205 casos.
No entanto, quando, em 1985, o número de novos infetados conhecidos subiu de 3 para 30 no país, os hospitais e os profissionais de saúde não estavam preparados para lidar com uma doença com estas caraterísticas. Como é contado no livro Mé- dicos e Sociedade – Para uma História da Medicina em Portugal no Século XX a Sida surgiu como “uma doença nova, contagio- sa, terrível e assustadora, de manifestações dramáticas, com formas clínicas por vezes repelentes, com prognóstico fatal, sem etiologia conhecida e sem tratamento”. Tudo isto se tornava ainda mais preocupante, num país onde a esterilização do material clínico ainda era feita em panelas de água a ferver, onde a lavagem de fardas ainda era feita em casa de quem as usava e onde os hospitais não tinham zonas de isolamento. O medo associado à doença fez parar os hospitais. As cirurgias, as endoscopias e biopsias eram
adiadas com receio de aumentar o contágio. Persistia o medo do desconhecido A Enfermaria Escolar do Hospital Egas Moniz que à época era dirigida por José Luís Champalimaud procurou a colaboração de Odette Ferreira que era virologista na Faculdade de Farmácia. Suspeitava-se que algo de novo estaria a acontecer e Odette Ferreira era a pessoa certa para o deslindar.
Foi a revolução que tirou Odette do laboratório para a carreira de docente e para a investigação no Instituto Pasteur, em Paris. Foi durante a sua investigação que teve contacto com a Sida. Os doentes sobre os quais recaíam as incertezas de diagnóstico não correspondiam ao doente clássico, não eram nem homossexuais, nem toxicodependentes.
Em Março de 1987, Luc Montagnier, ladeado por Odette Ferreira e José Luís Champalimaud, anunciava ao mundo, durante o Symposium da Sida em Lisboa, a descoberta de um novo vírus, o VIH-2.
Um vírus que era morfologicamente igual ao primeiro, mas em que o peso das proteínas era diferente. Um vírus cujos kits de laboratório existentes não detetavam.
Os dados estatísticos portugueses estavam a par do que acontecia no resto do Mundo, foram aumentando gradualmente e foram revelando a necessidade de atuação conforme a sua expressividade, nomeadamente, no que diz respeito ao número de heterossexuais que contraiam a doença. Em 1987, dos 90 casos diagnosticados, 50 por cento ocorriam em homossexuais, 4,4 por cento em toxicómanos, 8,9% em hemofílicos e 36,7 por cento em
heterossexuais. O relatório trimestral do Grupo de Trabalho, publicado em Janeiro de 1991, e assinado por Laura Ayres, dá indicações no sentido do controlo da evolução da doença em heterossexuais sublinhando (literalmente) a obrigação dos profissionais de saúde em aconselhar o uso de preservativos independentemente das suas convicções éticas, morais ou sociais. Era uma mensagem clara e óbvia de alguém que conhecia bem o pendor religioso da sociedade portuguesa e da sua eterna condenação ao uso do preservativo. É curioso perceber que de modo a tornar a mensagem mais evidente, este polémico relatório comparava o uso de preservativo no combate à Sida, ao uso de cloro no combate à febre tifoide ou à pasteurização do leite de cabra no combate à brucelose. No entanto, e apesar de todas as medidas de combate à Sida que se tentaram pro- mover, a doença continuou a aumentar em Portugal.
As crenças populares “milagrosas” que marcaram vários séculos começaram a ter fim com a evidência da ciência aplicada à medicina
Revela-se relevante falar da Sida e do seu aparecimento uma vez que esta doença se manifesta, muitas vezes, no sistema gastrointestinal dos pacientes que dela padecem. Estima-se que entre 50 e 90 por cento dos pacientes sofram de doenças estudadas pela gastrenterologia com maior predominância para as colites e esofagites. Existe, aliás, uma grande prevalência de morbilidade associada às esofagites em doentes com Sida.
No relatório da DGS sobre a infeção de Sida e VIH relativo ao ano de 2019, a candidose esofágica surge com a segunda doença mais
comum entre doentes portadores do vírus do VIH. Dos 226 novos casos, 39 revelaram complicações deste tipo. Aliás, consultando os casos acumulados entre 1983 e 2018, foram diagnosticados 59.913 casos de infeção por VIH, dos quais 22.551 atingiram o estádio de Sida, tendo sido comunicados 14.958 óbitos desde 1983. Só em 2018, morreram 261 pessoas infetadas por VIH. A década de 80 foi uma década recheada de acontecimentos marcantes, de atentados e descobertas, de emoções. A Gastrenterologia deu passos importantes rumo ao futuro e Portugal não foi exceção.
Dos bebés proveta às inovações tecnológicas
A criatividade surgia à velocidade da vida quotidiano e tudo tinha potencial para se tornar num fenómeno. Alguns nunca o eram, outros seria fenómenos até aos nossos dias. É o caso do jogo Pac-Man que surgiu a 22 de Maio de 1980. Toru Iwatani estava a jantar com os amigos e inspirou-se numa pizza em que faltava uma fatia. Nela viu a imagem de um comilão de boca aberta. O jogo em que o boneco amarelo come as bolas que se encontram em labirintos enquanto foge de fantasmas coloridos tornou-se num sucesso à escala mundial. Em 1985, nasceu o Mário mais famoso da história dos videojogos, O Super Mário, e apenas um ano depois surgiu o não menos famoso Tetris, criado pelo russo Alexey Pajitnov. Em 1981, a IBM lançava o primeiro computador pessoal, custava 1.565 dólares. No final da década, em 1989, chegou uma das maiores descobertas informáticas de sempre: Tim-Berner- s-Lee deu vida à World Wide Web (www) sonhada por Ted Nelson 24 anos antes. Foi a democratização da internet. A partir de então, para aceder à web só era necessário ter um computador com ligação à internet e um navegador para a poder explorar. Foi uma época em cheio que terminou com o aparecimento do Game Boy da Nintendo, em 1989. No mesmo ano, a seleção portuguesa de sub-19, orientada por Carlos Queiroz, sagra-se campeã do Mundo em Riade, na Arábia Saudita.
No mundo do desporto, o Mundial de 86 consagrou a Argentina, com Diego Maradona ao comando, como uma das melhores equipas do Mundo ao vencer a Alemanha Ocidental e ao conquistar o título de campeã do Mundo. Era mais uma alegria para um país que tinha acabado de conquistar a democracia derrubando a dita- dura e uma distração de uma das maiores tragédias da história da humanidade.
Alguns meses antes, a 26 de Abril, aconteceu a explosão de um dos reatores nucleares de Chernobyl, na Ucrânia.
Ainda hoje este é considerado um dos maiores acidentes da história não só pelas vidas que se perderam à época, como pelo comprometimento da saúde de todas as gerações que seguiram até aos nossos dias, mas também pela devastação ambiental que causou. O primeiro bebé proveta português nasce a 25 de Fevereiro de 1985 e abre caminho no combate à infertilidade em Portugal. No mesmo ano, os super passam a hipermercados e o primeiro Continente é inaugurado em Matosinhos. Rapidamente começam a surgir em outras cidades. Continente e Jumbo Pão de Açúcar são alvo de verdadeiras peregrinações atrás dos prometidos preços baixos. É inaugurada uma nova forma de consumo em Portugal.
O final da década chegou com alguma tristeza. O homem que cantou a liberdade, Zeca Afonso, morreu em 1987, vítima de esclerose lateral amiotrófica. No ano seguinte, a 25 de Agosto, deflagra um in- cêndio nos Armazéns Grandella que acabará por destruir os Grandes Armazéns do Chiado. O fogo destruiu 18 edifícios espalhados por 10 mil metros quadrados em redor da Rua do Carmo. No ano de 1989, houve outra rua na boca dos Portugueses: a Rua Sésamo. O Poupas e o Ferrão surgem como personagens principais de uma rua onde reina a alegria. Divertidos e brincalhões, estes personagens ajudam as crianças a combater o insucesso escolar e a melhorar a sua autoestima.
Esta autoestima era fundamental num país que nesta década lutou conta a expressão “ainda não há cá”. E por cá ainda não havia muito do que havia lá fora. Portugal era um país que vestia a roupa do irmão mais novo, tudo era curto e chegava ultrapassado. Mas a década de 90 havia de colocar fim a esta forma de vida, sobretudo pela modernidade que chegou com a entrada da União Europeia.