Nesta década, a medicina tornou-se minimamente invasiva e alcançou-se um patamar de desenvolvimento que permitiu a realização de transplantes em Portugal, combatendo a falência de órgãos vitais
A 5 de Julho de 1996 nasceu uma ovelha na Escócia. Na realidade, até terão nascido várias ovelhas nas terras altas escocesas neste dia, mas nenhuma tão especial como esta. Dolly foi o primeiro mamífero a ser clonado com sucesso a partir de uma célula adulta. Terá sido batizada com este nome por ter sido clonada a partir de células da glândula mamária de uma ovelha adulta. Criada no Instituto Roslin, na Escócia, Dolly teve uma vida igual a tantas outras ovelhas. Foi mãe de seis filhos e viveu cerca de seis anos acabando por ser abatida por sofrer de uma doença pulmonar incurável. Ao longo de toda a sua vida foi vigiada de perto pelos cientistas que avaliavam diversos parâmetros de desenvolvimento, nomeadamente, a tendência para o envelhecimento precoce. A clonagem desta ovelha esteve, desde o início, envolta em polémica tendo levantado diversas questões éticas associadas ao controlo do ADN e à manipulação dos códigos genéticos humanos.
Em Portugal, a população atingiu os 10 milhões de habitantes nesta década. O retrato social da época é marcado pela entrada de Portugal na União Europeia. Respirava-se otimismo social entremeado por algum pessimismo económico. A natalidade manteve-se baixa e o envelhecimento demográfico acentuou-se, tal como a assimetria regional entre o litoral e o interior do país. As taxas de mortalidade infantil desciam todos os anos, sendo das mais baixas a nível mundial. Esta década assume uma caracterização diferente da anterior no que diz respeito ao agregado familiar. Há cada vez mais famílias, mas também mais pessoas a viverem isoladas.
Os jovens saem cada vez mais tarde de casa dos pais. Vão assim integrar o mercado de trabalho com idade superior e com mais estudos. Os casamentos católicos são cada vez menos; mais de um terço dos casamentos ocorre entre pessoas que já viviam juntas antes de contrair o matrimónio.
No ano de 1990, Portugal contava com 28.016 médicos, dos quais 19.087 eram de clínica geral, que exerciam em 240 hospitais. Podia contar-se com 194 gastrenterologistas que realizaram, neste ano, 96.558 consultas da especialidade nos hospitais das quais resultaram 119.753 exames endoscópicos. Em 1990 morreram 103.115 pessoas, das quais 33 com doenças infeciosas intestinais, 3.010 com tumores malignos no estômago, 1.486 com tumores malignos no cólon e 798 com tumores malignos no colon e reto.
Os anos 90 começaram com esperança na humanidade. Nelson Mandela terminaria os seus 27 anos de cativeiro na África do Sul a 11 de Fevereiro de 1990. Nelson Mandela foi eleito presidente da África do Sul a 10 de Maio de 1994, tendo recebido o Prémio Nobel da Paz no ano anterior. A esperança na humanidade durou pouco. Nos Estados Unidos, numa antecipação do que viria a ser um dos mais violentos atentados da história americana, um atentado na garagem do World Trade Center causou a morte a seis pessoas e provocou mais de mil feridos.
Foi a 26 de Fevereiro de 1993 que uma carrinha Ford entrou discretamente no parque de estacionamento subterrâneo do edifício, pouco tempo depois explodiu. Estima-se que tenham sido usados 700 quilos de explosivos para atentar conta um dos símbolos do poder económico americano. Foi entendido como um dos primeiros sinais do terrorismo associado às confissões religiosas.
No dia de Natal de 1991 é declarado o fim da Guerra Fria com o fim da União Soviética. A europa estava cada vez mais unida. A década de 90 marca o início da união económica da União Europeia. Em 1990 dá-se início à livre circulação de capitais entre os países europeus e em 1992, o Tratado de Maastricht desenhou a União Económica Monetária. Era o esboço da implementação da moeda única que nasceu a 1 de Janeiro de 1999, um ano depois da criação do Banco Central Europeu. Portugal declarou “morte” ao escudo e celebrou com entusiasmo o novo Euro, que se tornou a moeda oficial de 11 países.
Atenção muggles, que a magia está prestes a invadirvos a imaginação. Em 1997, JK Rowling lançou o primeiro livro da saga de Hogwarts em que um jovem surge para salvar o mundo da poderosa magia. Harry Potter e a Pedra Filosofal convenceu miúdos e graúdos a entrar no mundo da magia. Os sete livros da saga consagraram a autora e bateram todos os recordes de vendas. A magia também se fazia sentir dentro das paredes dos laboratórios. Em 1993, enquanto o químico Simon Campbell trabalhava num medicamento para dilatar as artérias do coração e aliviar a dor anginosa fez uma descoberta inusitada. Os efeitos estavam longe de ser os desejados, mas os participantes do ensaio clínico relatavam ereções súbitas quando tomavam o citrato de sildenafil. Em 1998, a Pfizer pegou na descoberta do químico inglês e lançou o Viagra®. Era a primeira vez que existia uma solução para a disfunção erétil.
No dia 31 de Agosto de 1997, o mundo voltava a ficar colado à televisão. As imagens mostravam um Mercedes Série S totalmente deformado por um violento embate. Diana, a Princesa do Povo, que na década anterior tinha conquistado o coração do mundo com a sua empatia, perdia a vida em Paris, no Túnel D’Alma. A Princesa do Povo morreu aos 36 anos. Sucederam-se homenagens e lágrimas um pouco por todo o mundo. Lágrimas que ainda não tinham secado quando morreu Madre Teresa de Calcutá, a 5 de Setembro. Tinha 87 anos e foi uma das mais carismáticas missionárias da década de 90. Cuidou dos pobres e incapacitados ao longo de toda a sua vida tendo sido agraciada com o Prémio Nobel da Paz em 1979. O seu trabalho foi de tal ordem relevante que o Papa João Paulo II a beatificou em 2003 e o Papa Francisco a canonizou em 2016.
A década tinha começado trágica com a morte de Freddy Mercury, em 1991. O legendário vocalista dos Queen acabou por sucumbir a uma broncopneumonia causada pelo vírus da SIDA, deixando um legado artístico brilhante e músicas que o mundo inteiro continua a trautear. Esta foi uma perda tão trágica como a de Ayrton Senna. O piloto brasileiro morreu a 30 de Abril de 1994 no Grande Prémio de San Marino, em Itália, e a Fórmula 1 ficou mais pobre. À sétima volta, na curva de Tamburello, o Williams de Senna falhou a curva e embateu no muro de betão a cerca de 210 quilómetros por hora. O monolugar ficou feito em pedaços que se espalharam pela pista. A morte de Ayrton Senna assumiu contornos ainda mais trágicos por ter ocorrido em direto. Os amantes deste desporto automobilístico viram morrer o seu herói nessa tarde e choraram-no com a mesma emoção com que haviam celebrado todas as suas vitórias. Três vezes campeão do mundo, Senna estará sempre na pole position da história da Fórmula 1.
Nas salas de cinema da década de 90 imperavam estreias grandiosas. Em 1991, Hannibal Lecter, um psiquiatra, assassino e canibal deixava os espetadores colados às cadeiras dos cinemas. O suspense, drama e terror fizeram d’O Silêncio dos Inocentes um dos maiores sucessos de bilheteira desse ano. Em 1994 mais duas estreias fizeram as delícias dos cinéfilos, Quentin Tarantino apresentou uma das suas primeiras obras primas: Pulp Fiction e Tom Hanks consagrou o seu talento em Forrest Gump. A década cinematográfica terminou em grande. Em 1997, a história de amor entre um artista pobre e uma jovem rica a bordo de um navio que acabaria no fundo do Oceano Atlântico revelou-se um estrondoso sucesso de bilheteira. James Cameron “conta” a história de um dos mais famosos naufrágios do século, acrescenta-lhe uma história de amor e arrecada 11 Óscares em 14 nomeações. Jack e Rose, ou Leonardo Di Caprio e Kate Winslet, protagonizaram Titanic, a mais cara longa metragem feita até então e um dos filmes mais rentáveis da história do cinema. Esta foi uma década de sucessos
memoráveis. A década cinematográfica terminou com uma revolução. Matrix estreou em 1999 e definiu um antes e um depois. Na música, o pop e o rock alternativo dominavam as tabelas de vendas. A explosão de novas bandas do final dos anos 80, alcançava o sucesso no início dos anos 90. Bandas como Greenday, Nirvana, Pearl Jam, Smashing Pumpkins, The Prodigy e RadioHead consagravam o seu sucesso ao qual se juntavam as bandas mais icónicas nascidas nos anos 90, como as Spice Girls e os Backstreet Boys. Nomes como Britney Spears, Marilyn Manson, Jay-Z e Celine Dion conquistavam a atenção dos amantes da música. Em Portugal, começam também a surgir novos estilos. O Rap começava a surgir timidamente e com ele surgiam nomes que hoje são míticos como Da Weasel, Boss AC ou Sam The Kid. Do rock alternativo surgiram os Ornatos Violeta e do pop rock surgia o mítico álbum Viagens, o álbum de estreia de Pedro Abrunhosa e os Bandemónio.
Os Silence 4 surgiram em 1996 e puseram toda a uma geração a cantar os seus sucessos até aos dias de hoje. Esta também foi a década em que surgiu o icónico estilo musical da música Pimba com o cantor Emanuel a popularizar o estilo, seguiram-se outros nomes tão sonantes como Ágata, Mónica Sintra ou Toy.
Foi no início dos anos 90 que Tony Carreira deu asas aos seus sonhos de menino e lançou também o seu primeiro álbum, É Verão em Portugal. Até aos dias de hoje Tony Carreira vendeu 4 milhões de cópias.
A música tornava-se cada vez mais próxima dos seus amantes. Depois do Walkman, surgiram os primeiros Discman que se popularizaram nesta década. Em 1998, a Apple lançou o primeiro iMac e nasceu todo um novo conceito de design associado aos computadores. A internet estava cada vez mais acessível. Esta acessibilidade ficou a dever-se a uma quebra no custo dos computadores pessoais. Em 1994 surgiram as primeiras PlayStation.
Assistiu-se a um aumento da popularidade dos telemóveis ao mesmo tempo em que se observava a diminuição do tamanho dos equipamentos. Os dispositivos celulares começaram a ter mais funções disponíveis para além de se limitarem a fazer apenas chamadas. Passou a ser possível utilizar telemóveis como se fossem calculadoras, blocos de notas ou agendas telefónicas. Em 1995,
surgiram os serviços de dados e de mensagens escritas e em 1996 os cartões SIM pré-pagos, em Portugal foram os famosos anos das Vitaminas T, da Telecel. Esta foi a década em que a tecnologia móvel se impôs, abrindo caminho à era dos Smartphones, mas também foi uma época de guerras. A década começou com a Guerra do Golfo e terminou com a Guerra do Kosovo. Começava a perceber-se que a união fazia a força e um dos resultados mais evidentes foi o Projeto Genoma Humano (PGH), criado em 1990 e que contou com a participação de cientistas de 18 países. Este projeto pretendia sequenciar todos os pares das bases nitrogenadas do DNA e que compõem o genoma do ser humano. O PGH pretendia identificar todos os genes humanos e contou com a colaboração de cerca de 5 mil cientistas e decorreu em 250 laboratórios. Desvendar os segredos do genoma humano abriu caminho a outras pesquisas na área da genética, da medicina e da biotecnologia. Este projeto global permitiu descobrir que o genoma humano tem 3,2 mil milhões de nucleotidos e que a sequência destes é 99,9% igual entre todas as pessoas.
O relevo deste projeto deve-se às descobertas que permitiu. O estudo da genética humana permitiu compreender as causas relacionadas com alguns tipos de cancro, bem como o sequenciamento do DNA para cerca de 2 mil doenças genéticas.
Por outro lado, facilitou o diagnóstico de doenças genéticas, bem como a produção de medicamentos mais eficazes e com menos efeitos secundários.
Foi um PGH durou até 2003 e abriu caminho para a personalização dos tratamentos e medicamentos baseados no perfil genético dos pacientes, mas também serviu de suporte para a medicina forense criando mais fiabilidade no esclarecimento de crimes.
O PGH trouxe um grande avanço não só na deteção de várias doenças, mas sobretudo na sua prevenção. O conhecimento gerado permitiu avaliar quem corre o risco de contrair determinadas doenças e ajudou no planeamento familiar através do aconselhamento genético. Por outro lado, as questões que se impõem quando se fala deste programa de investigação prendem-se, sobretudo, com as questões éticas e com os perigos inerentes à manipulação genética. Em síntese, o PGH permitiu a diminuição do sofrimento humano com o aumento das possibilidades de
diagnóstico e de cura de milhares de doenças. A 14 de Abril de
2003 deu-se a tarefa por concluída com a sequenciação de 99% do genoma humano com uma precisão de 99,99%.
No final da década, em 1999 estavam inscritos na Ordem 31.758 médicos, o que corresponde a 318 médicos por 100.000 habitantes. O país contava com 390 centros de saúde onde se realizaram 26,9 milhões de consultas em ambulatório. Fazendo contas à despesa do SNS com cada habitante há um aumento significativo na década de 90. Se em 1991 o valor médio da despesa era de 233 euros por habitante, em 1999 esse valor era de 5.487 euros.
Nas doenças de declaração obrigatória foram registadas 959 pessoas com vários tipos de hepatite, sendo a maior incidência de Hepatite C. Em 1999 morreram 108.268 pessoas, 7.925 com doenças do foro digestivo, sendo que se destaca a prevalência de tumores malignos do estômago e cólon e doenças hepáticas.
A Gastrenterologia na era do minimamente invasivo
A gastrenterologia na década de 90 é marcada por grande evolução da tecnologia. Os endoscópios são cada vez mais exatos, a imagem mais nítida e a sua potencialidade cada vez mais alargada. No entanto, era possível ir mais além. E esse mais além passou pela união da endoscopia com a ecografia. A ecoendoscopia apareceu ainda na década de 80. Esta nova técnica de diagnóstico passou pela adaptação de uma sonda ultrassónica miniaturizada a um fibroscópio. Assim se ganhou não só olhos para dentro do corpo, mas também uma maior capacidade de diagnóstico.
O ecoendoscópio trouxe um admirável mundo novo. Esta técnica permitia superar os obstáculos que se impunham nas ecografias percutâneas. Esta nova forma de diagnóstico, qual corrida de barreiras, via para além dos ossos, dos gases intestinais ou da obesidade dos pacientes. Passou a visualizar-se os órgãos profundos de uma forma totalmente nova, sobretudo o pâncreas e a extremidade distal da via biliar principal. A resolução da imagem
ecográfica passou a permitir a distinção das várias camadas que constituem as paredes do tubo digestivo. A ecografia e a endoscopias juntas aperfeiçoaram os diagnósticos e trouxeram mais segurança às terapêuticas endoscópicas. Esta técnica assumiu-se de tal forma relevante que a 20 de Julho de 1991 nasceu o Grupo Português de Ul- trassons na Gastrenterologia (GRUPUGE), uma seção especializada da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia. Este grupo destinava-se a desenvolver a prática da ecografia no diagnóstico e na terapêutica de um grupo de doenças gastrenterológicas cada vez mais amplo. José Manuel Carrilho Ribeiro teve um papel determinante no desenvolvimento da ação desta secção especializada da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia.
Desde a década de 90 que a ecoendoscopia se tornou mais do que uma mera tecnologia de imagem. Tornou-se no teste de diagnóstico clínico essencial na otimização e tratamento de várias patologias gastrointestinais.
Ecoendoscopia Esta técnica veio revolucionar a capacidade de visualização das estruturas internas dos órgãos
Com esta técnica ganhou-se mãos dentro do corpo, sem ter de recorrer à cirurgia. Inaugurava-se a era do minimamente invasivo reduzindo os perigos inerentes a qualquer cirurgia e conseguindo resultados mais precisos com técnicas seguras para os pacientes. O ecoendoscópio permite identificar uma série de diferentes camadas ultrassonográficas da parede gastrointestinal em vez de uma única estrutura.
Para além desse aperfeiçoamento, potenciou a capacidade de visualizar detalhadamente as áreas adjacentes à parede digestiva bem como guiar, com um elevado nível de precisão, a passagem transparietal de agulhas até estruturas vizinhas. “Conseguimos ir o mais longe possível e resolvemos as mesmas situações sem usar métodos cruentes”, refere Guilherme Macedo.
A ecoendoscopia tem permitido à Gastrenterologia não só ser cada vez menos invasiva, mas também mais interventiva. Miguel Bispo salienta que esta efetividade da ecoendoscopia tem trazido para a especialidade procedimentos que antes seriam feitos por cirurgiões. A evolução dos ecoendoscópio é de tal ordem que permitem intervir fora do tubo digestivo. “Existem ensaios a validar a eficácia destas técnicas de intervenção e com resultados muito promissores. A ecoendoscopia de intervenção ainda tem uma grande margem de evolução” refere Miguel Bispo.
A era do minimamente invasivo está intimamente relacionada com a evolução da tecnologia. “Cada vez passamos mais barreiras, cada vez somos mais interventivos e mais afoitos na remoção de lesões de uma forma minimamente invasiva”, refere Pedro Moutinho Ribeiro. Através destas tecnologias é possível chegar a qualquer parte do interior do organismo. Tornou-se possível observar a partir de dentro, de analisar e diagnosticar, de retirar amostras e proceder terapeuticamente. A redução do nível de invasão trouxe um grande desenvolvimento para a especialidade.
A Medicina parece, muitas vezes, superar a ficção científica. Se no Matrix o personagem principal tem de escolher entre uma cápsula vermelha e uma azul que lhe darão destinos diferentes, na gastrenterologia, a cápsula endoscópica trouxe uma revolução.
Esta tecnologia colocou olhos dentro do intestino delgado de uma forma totalmente inovadora.
Em 1990, um grupo de cientistas israelitas conseguiram criar uma cápsula endoscópica capaz de transmitir imagens através de uma microcâmara. Esta tecnologia baseou-se na tecnologia militar de mísseis teleguiados. Cerca de 8 anos depois, Paul Swain começou a realizar os primeiros exames com cápsula endoscópica em animais. Os resultados foram de tal forma satisfatórios que em 2001, começou a ser comercializada no Estados Unidos e certificada no mercado europeu. Com apenas 3,7 gramas e um tamanho de 11 por 27 milímetros, esta primeira cápsula endoscópica incorporava uma câmara, um suporte de lentes, lentes, seis LED que iluminam o trajeto, sensores de imagem, uma bateria, um transmissor e uma antena. Esta câmara permite detetar hemorragias digestivas ocultas que não são detetáveis por métodos tradicionais, bem como doenças inflamatórias do intestino, tumores no intestino delgado, doença de Crohn ou enterites. Esta cápsula de vídeo permite captar imagens em áreas não alcançadas pela endoscopia e pela colonoscopia. A sua utilização é indicada, sobretudo, para o estudo do intestino delgado.
De aparência, esta cápsula assemelha-se a um comprimido tradicional e é ingerido como de desse se tratasse. Assim que é engolida começa a captar imagens do tubo digestivo. “O intestino delgado mede 7 metros e é muito difícil de observar por dentro até que num passe de magia surge uma câmara do tamanho de um comprimido que filma, transmite, grava e permite fazer diagnósticos. Havia outros exames, mas todos muito complexos. A cápsula endoscópica foi uma grande evolução que surgiu”, refere Rui Tato Marinho.
Sem sedação, nem internamento, este exame pode ser feito em ambulatório e os pacientes podem fazer a sua vida normal com restrições mínimas. Duas horas após a ingestão pode beber-se água e quatro horas depois, ingerir uma refeição ligeira. As imagens são captadas durante 8 horas e são transmitidas para um gravador que é colocado na cintura. Essa é a quantidade de horas que se consideram suficientes para a cápsula filme todo o intestino delgado que é a zona de mais difícil acesso do sistema digestivo.
Tal como todos os procedimentos também a cápsula tem desvantagens como a impossibilidade de tratamento imediato tal como acontece nas endoscopias e colonoscopias.
Os anos 90 também trouxeram novidades para as Hepatites. Em 1992 começou a ser comercializada a primeira vacina contra a hepatite A que se revelou eficaz em cerca de 95 por cento dos casos. Esta vacina prepara o corpo com anticorpos específicos para o aparecimento de hepatite A criando imunidade. Em Portugal estão disponíveis três vacinas, uma que previne a infeção causada pelo VHA, outra para a hepatite B e outra combinada que confere imunização para os dois vírus.
Os anos 90 foram anos de desenvolvimento para a SPG. O conhecimento médico estava cada vez mais especializado e sentia-se a necessidade de aprofundar conhecimentos dentro da área da gastrenterologia. Foi neste sentido que nasceu, em 1993, o Núcleo de Neurogastrenterologia e Motilidade Digestiva, uma secção especializada da SPG que se dedica ao estudo, formação da Neurogastrenterologia e dos estudos funcionais aplicados ao tubo digestivo. A sua existência tem dado um forte contributo para a melhoria da qualidade de vida dos doentes com distúrbios funcionais gastrointestinais. O ano de 1994 foi de relevo para a Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia. Foi neste ano que foi fundado o GE – Portuguese Journal of Gastroenterology. A organização sistemática do conhecimento científico foi muito relevante para a prática da gastrenterologia. “Publicar é a forma mais eficaz de difundir conhecimento. O GE é o nosso órgão oficial
mais eficaz de difundir conhecimento. O GE é o nosso órgão oficial e acaba por ser o espelho da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia. É um órgão que tem melhorado muito os parâmetros de qualidade”, refere Miguel Bispo. Esta difusão tornou-se ainda mais relevante com a indexação da revista em 2017 nas bases de dados internacionais. O trabalho científico dos gastrenterologistas portugueses ganhou uma nova visibilidade e também uma, ainda, maior credibilidade. A indexação contribuiu para o aumento do número de submissões e para o aumento dos downloads de artigos. A revista portuguesa começou, também, a ser procurada por especialistas internacionais que reconhecem a qualidade da revista e nela pretendem publicar os seus trabalhos.
“É muito difícil publicar e publicar vale dinheiro e projeção. Com a indexação e entrada na Pubmed entramos na primeira divisão. O GE é a nossa jóia da coroa. Não há muitas revistas indexadas em Portugal, a nossa é 5a e é um orgulho muito grande e uma vitória que nos dá uma grande projeção”, afirma Rui Tato Marinho que acrescenta: “O GE de quem fui Editor-Chefe de 2009-2011, passou a ser editado desde 2012 pela primeira vez por uma editora internacional (Elsevier) o que lhe deu um cunho ainda mais competitivo e profissional. A experiência adquirida no GE permitiu que eu próprio fosse convidado pela Ordem dos Médicos para relançar a Acta Médica Portuguesa de 2011- 2016, revista também indexada. Ganhei a Medalha de Mérito da Ordem dos Médicos em 2015. Mais tarde dois outros gastrenterologistas viram a ser distinguidos com a mesma medalha, Leopoldo Matos em 2018 e em 2019 a Castel-Branco da Silveira.”
A mundanidade aterrou na Portela
O ano de 1998 foi um ano memorável em Portugal. Enquanto o país se rendia à chegada da Expo98 a Lisboa, José Saramago era agraciado com o Prémio Nobel da Literatura e a Ponte Vasco da Gama era inaugurada com uma feijoada digna do livro dos recordes do Guinness. À boa maneira portuguesa, a inauguração fez-se com panelas de feijão e enchidos para 17 mil convidados. Um recorde tão memorável como a mais perfeita obra de José
Saramago, Ensaio sobre a Cegueira, publicado em 1995. Com a entrada na União Europeia, à época a CEE, e com o desenvolvimento da tecnologia começou a consumir-se tudo o que se consumia no resto da europa e nos Estados Unidos. As roupas, os estilos, a música e a televisão que faziam sucesso nesta década eram internacionais. Séries como Friends (que estreou em 1994) ou Seinfeld (que estreou ao virar da década).
O humor britânico chegava pelas ‘palermices’ de Mr. Bean (1990) que conquistou fãs desde a estreia. O universo americano em toda a sua plenitude chegava através de Baywatch.
Na televisão portuguesa, não faltam sucessos nacionais fomentados por uma novidade: a diversidade de canais. A década de 90 foi revolucionária para a televisão portuguesa. Quase em simultâneo surgiam os primeiros canais privados em Portugal. Mudou tudo. Terminava a hegemonia da RTP e da RTP2 e surgiam programas inovadores, estilos noticiosos distintos e uma panóplia de opções. A SIC começou a emitir a 6 de Outubro de 1992 e a TVI a 20 de Fevereiro de 1993. Em 1995, Henrique Mendes juntava amigos ou familiares que se tinham perdido no tempo, um tempo em que ainda não havia o Facebook para juntar as pessoas. O Ponto de Encontro foi um sucesso de audiências, de abraços e de lágrimas. No mesmo ano, no mesmo canal, mas no espectro oposto da emoção, João Baião apresentava o programa que virou a televisão
portuguesa do avesso. O Big Show Sic oferecia três horas inteiras de animação, saltos, música e foi líder de audiências incontestável, derrotando o Parabéns de Herman José. Outros programas como Isto Só Vídeo, Herman Enciclopédia, a Noite da Má Língua ou o Juiz Decide, trouxeram inovação portuguesa para a televisão e criaram as guerras de audiências. Muitos dos grandes cantores da atualidade brilharam na Chuva de Estrelas, que estreou em 1993. Sara Tavares e João Pedro Pais começaram a carreira neste palco.
Uma das mais memoráveis revoltas dos portugueses na década de 90 terá sido o famoso “Buzinão”. Alguns minutos antes das sete da manhã do dia 24 de Junho de 1994, seis camiões bloquearam o acesso sul da Ponte 25 de Abril. Os automobilistas buzinavam contra o aumento das portagens de 100 para 150 escudos. O “engarrafamento” prolongou-se por 50 quilómetros e sucederam-se confrontos com a polícia. Era o princípio do fim do Cavaquismo.
A era do minimamente invasivo está intimamente relacionada com a evolução da tecnologia
O último ano da década e no milénio, deixou Portugal mais pobre. Perdeu-se a voz maior do fado. Amália Rodrigues morreu a 6 de Outubro de 1999. A ‘Rainha do Fado’ deixou um legado impressionante, internacionalizou o fado e deixou uma obra discográfica de relevo. Uma casa Portuguesa, Povo Que Lavas do Rio ou Oh Gente da Minha Terra serão sempre sinónimo de uma voz que será eterna para a história do fado em Portugal. Até 1999 foram vendidas 30 milhões de cópias do seu repertório.
Neste mesmo ano, a 20 de Dezembro de 1999, Portugal encerrou um ciclo secular da sua história. A transferência da soberania de
Macau para a China marcou o fim do Império Português. Nesse dia, a bandeira Portuguesa foi retirada e substituída pela chinesa. A cerimónia de entrega de Macau marcou também o fim do imperialismo europeu na Ásia.
Portugal, camisola amarela nos transplantes hepáticos
A história da medicina moderna é indissociável da história dos transplantes. O desenvolvimento desta área da medicina, nomeadamente dos transplantes de órgãos vitais terá sido uma das aquisições mais importantes da medicina do século XX.
Os transplantes foram a primeira forma de combate à falência dos órgãos e a história dos transplantes em Portugal tem sido uma história de sucesso. Rim, coração, pulmão, fígado, pâncreas e intestino começaram a ser transplantados de um corpo para outro muito antes da década de 90. No entanto, esta foi uma década com marcos importantes não só ao nível da regulamentação, mas também ao nível da organização. Em 1996 foram criados os Gabinetes de Coordenação de Colheita de Órgãos e Transplantação em Lisboa (nos Hospitais de São José e Santa Maria), Coimbra (Hospitais da Universidade) e Porto (Hospital de São João e Santo António).
Estados Unidos, França e Inglaterra foram os pioneiros na passagem das fases experimentais para a aplicação clínica. Nessa fase inicial, Portugal era apenas um observador atento relativamente a estas técnicas. Thomas Starzl foi um dos grandes nomes da transplantação a nível mundial. A transplantação renal começou a ser como uma terapêutica corrente quando Starzl comunicou, em 1963, os resultados da sua série de homotransplantes renais executados em Denver. A inovação vinha, sobretudo, do esquema de imunossupressão por drogas que permitiam a sobrevivência consistente de uma percentagem bastante aceitável de doentes que
tinham recebido rins alheios. Quatro anos depois, a 3 de Dezembro de 1967, Christian Barnard conseguiu um grande feito para a medicina mundial ao realizar o primeiro transplante cardíaco, na Cidade do Cabo. A medicina encontrava assim uma solução viável para a falência de órgãos vitais.
Starzl dedicou grande parte da sua vida a esta área da medicina e o seu grande projeto foi a transplantação de fígado. O seu ponto de partida foi uma anastomose portocava num cirrótico diabético que tinha melhorado a diabetes. A partir de então dedicou-se a um estudo experimental nesta área. Demorou a alcançar bons resultados, sacrificando vários cães nesta tarefa, mas acabou por ser bem-sucedido depois de ter feito vários transplantes hepáticos nesse animal. Começou a aplicar a técnica estudada nos humanos. Nos primeiros cinco transplantes executados nenhum paciente sobreviveu para além dos 23 dias. A imunossupressão seria sempre o grande entrave ao sucesso.
No entanto, recorrendo à mesma fórmula utilizada nos transplantes renais e cardíacos a taxa de sucesso foi sendo, gradualmente, superior. Até 1977 realizaram-se cerca de 200 transplantes de fígado no mundo.
A cápsula endoscópica Esta técnica revolucionária é o expoente do minimamente invasivo
Em 1979 Roy Calne dava mais um passo na história dos transplantes ao utilizar, pela primeira vez, a ciclosporina em dois pacientes que foram submetidos a transplantes hepáticos. Os dados eram cada vez mais promissores. Em 1989 Starzl e a sua equipa relataram que a sobrevivência de 1.179 pacientes que tinham sido submetidos a este tipo de transplante em 1 e 5 anos foi, respetivamente de 73 e 64 por cento.
Em Portugal, Alexandre Linhares Furtado, em Coimbra, e João Pena, em Lisboa, estiveram na linha da frente da transplantação renal desde os anos 60. Ambos iniciaram e desenvolveram programas de referência a nível global.
Ao longo de cinco décadas foram várias as equipas multidisciplinares de médicos que aprofundaram e otimizaram estes programas de transplantação de órgãos sólidos. Nefrologistas, cirurgiões, urologistas, gastrenterologistas, hepatologistas, pneumologistas e imunologistas são parte integrante destas equipas. O trabalho que desenvolvem é altamente especializado e, muitas vezes, é a única alternativa para manter a vida dos pacientes.
O primeiro transplante renal em Portugal foi realizado em Coimbra por Alexandre Linhares Furtado. Mas seria redutor contar esta história da história da medicina portuguesa em apenas uma linha. Sobretudo porque se trata de uma história onde não faltam peripécias, tábuas e a possibilidade (ainda que acautelada) de ser preso. O dia 20 de Julho de 1969 foi o dia que o homem chegou à lua e os transplantes chegaram a Portugal. Linhares Furtado escolheu o dia com uma precisão cirúrgica. Tratava-se de um sábado (o dia mais calmo da semana no hospital) e escolheu o “melhorzito” dos blocos operatórios do Hospital de Coimbra. No plano, executado com rigor, estava um transplante renal entre irmãos. Este era um plano (quase) secreto. Soube apenas quem tinha de saber até porque a legislação ainda não permitia uma operação deste tipo com um dador vivo. Numa velha sala do Hospital colocou raios ultravioleta montados em tábuas para combater a falta de esterilização que, à época, ainda persistia. A pena por este ato podia ir até oito anos de prisão. A doação em vida de um órgão levantava questões jurídicas e não legisladas. Alexandre Linhares Furtado não ignorou a lei, mas entendeu que era preciso fazer a medicina avançar. Passaria vários anos a lutar pela criação da legislação (que haveria de surgir em 1997).
Nunca lhe tremeu o bisturi, mas sentia a urgência dentro de si. A
mesma urgência que o fez realizar o primeiro transplante de fígado em Portugal, em 1992.
Uma paciente entrou em coma com uma hepatite fulminante e nessa mesma noite apareceu um órgão compatível que permitiu a realização do transplante. Se nos rins os processos não eram urgentes, no fígado a urgência é sempre extrema.
Linhares Furtado foi, sobretudo, um estudioso e foi a partir da sua pesquisa e do seu método que foram surgindo os transplantes. Quando pensou os transplantes de intestino delgado desenhou todas as hipóteses do que poderia suceder. Desde o dia em que Linhares Furtado arriscou a liberdade para fazer história que os transplantes se desenvolveram gradualmente através de vários programas. Um dos mais relevantes terá sido o programa hepático criado em Setembro de 1992. Em apenas três anos foram realizados 30 transplantes hepáticos. Este programa aconteceu depois de vários hepatologistas portugueses terem estado em centros de referência de transplantação hepática no estrangeiro, onde recolheram técnicas e protocolos que trouxeram para Portugal. A criação de um Centro Hepato-Bilio-Pan- creático e de Transplantação (CHBPT) no Hospital Curry Cabral foi o culminar do trabalho de muitos médicos que se dedicaram à área dos transplantes. Pela mão de Eduardo Barroso, este centro associou uma capacidade cirúrgica diferenciada do fígado e do pâncreas – com recurso a meios auxiliares de ponta – com a transplantação renal, hepática e pancreática. Em 10 anos o CHBPT transformou-se num centro de referência na área da cirurgia hépato-bilio-pan- creática tendo realizado 1.550 transplantes hepáticos, 1.110 transplantes renais e 31 pancreáticos. Em 2018, o número de transplantes hepáticos realizados neste centro atingia o número 2000, fazendo deste um dos centros onde se realizam mais transplantes a nível europeu.
2000, esse número tão temido por tantos em tantas civilizações. Com o fim da década de 90 a chegar, havia quem temesse o fim do mundo ao virar da meia-noite do dia 31 de Dezembro de 1999.