Em 60 anos aconteceu uma revolução na medicina à qual a gastrenterologia proporcionou um significativo contributo. Se o desenvolvimento desta especialidade em Portugal começou a olhar para o que se fazia no estrangeiro, a realidade mudou transversalmente e, atualmente, a gastrenterologia está na vanguarda mundial da investigação científica e tecnológica. O futuro prevê-se tão revolucionário e disruptivo como o passado. Diante dos olhos, os gastrenterologistas portugueses
têm uma visão que se estende para lá do que observam através dos endoscópios. O principal objetivo definido passa por melhorar a qualidade de vida da população portuguesa, tendo como focus a prevenção e também a solução dos problemas digestivos. O caminho para a saúde digestiva é promissor e prevêem-se avanços de relevo ao longo da próxima década.
A realidade da gastrenterologia é disruptiva. É a natureza da sua evolução que lhe originou desafios inéditos e consecutivos. “Nos próximos 10 anos vai acontecer o inesperado porque isso faz parte da rotina”, afirma Rui Tato Marinho que antevê um grande desenvolvimento da tecnologia ligada à endoscopia, mas também inovações ao nível da genética, química, da imunologia, da biologia molecular, virologia ou farmacologia. O presidente da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia crê que o caminho para a saúde digestiva passa pela ligação de tudo o que já se alcançou ao tanto que está por vir: “A evolução da medicina passa por ligar o nosso know how à inteligência artificial e ao data mining e sofrerá o aporte de várias entidades a chamada cross-pollination do ponto de vista tecnológico”.
Num mundo de possibilidades, os endoscópios poderão desenvolver-se no sentido da prestação de atividades do tipo microscópico e no aperfeiçoamento das cápsulas endoscópicas que
podem vir a substituir as colonoscopias no rastreio do cancro do cólon: “Se calhar vamos achar as colonoscopias obsoletas e vai ser possível a existência de um ‘drone’ interno, uma cápsula, que faça biópsias. Espero um grande desenvolvimento ligado à tecnologia”, refere Rui Tato Marinho.
Se nas décadas em que a gastrenterologia começou a desenvolver-se tudo acontecia devagar, a velocidade da evolução inverteu-se. Tudo muda à velocidade das descobertas que acontecem a cada minuto. “Numa década tudo muda na medicina. O conhecimento avança, passamos a conhecer o que até então era desconhecido, percebemos que várias conceções que tínhamos sobre várias doenças estavam erradas e estabelecemos novas metas para otimizarmos a prestação de cuidados de saúde aos nossos doentes”, afirma Miguel Bispo. A ruptura com o passado acontece todos os dias e será fundamental no combate às doenças que assolam o sistema digestivo.
Entre as grandes preocupações dos gastrenterologistas, relativamente ao futuro, destaca-se a área oncológica e as doenças inflamatórias. Os cancros do esófago, cólon e reto, fígado, pâncreas e estômago estão entre os que mais matam e aqueles em que as taxas de incidência e as taxas de mortalidade assumem contornos preocupantes. Esta é uma realidade que não é de agora, mas na atualidade continua a crescer visivelmente e em que a capacidade de resposta ainda é limitada, nomeadamente em relação aos problemas oncológicos do pâncreas. Aquilo que a gastrenterologia pretende é encontrar respostas para os mistérios do aparelho
digestivo que ainda persistem e salvar vidas. A multiplicidade de órgãos que compõem os 10 metros tubo digestivo, o fenómeno químico da digestão, os 100 triliões de bactérias que “vivem” no intestino, o equilíbrio imunológico que essas bactérias garantem, os circuitos de motilidade e todas funções e doenças associadas ao fígado e ao pâncreas fazem deste sistema um dos mais complexos e ricos. “A gastrenterologia, mesmo sendo menos mediática do que outras especialidades, contém um mundo de áreas de interesse e de intervenção. É um alfobre de multidisciplinaridade que vai entroncar no futuro da medicina”, afirma Leopoldo Matos.
Medicina de intervenção e de precisão
Os últimos dez anos trouxeram alguns desenvolvimentos muito importantes, em diversas áreas, que garantem que vai ser possível alcançar patamares ainda mais relevantes nos próximos dez anos. Um desses grandes desenvolvimentos prende-se com a qualidade da imagem. Vê-se mais e vê-se (muito) melhor. Isso só foi possível através do desenvolvimento do processamento e da definição da imagem. Ganhou-se uma visão privilegiada para dentro do corpo
através da evolução destes exames complementares de diagnóstico e, assim, ganhou-se mais precisão no diagnóstico. Por outro lado, ganhou-se uma grande capacidade de intervenção. Se há uns anos a terapêutica endoscópica do tubo digestivo se limitava à remoção de pólipos, atualmente surgiram diversas técnicas que permitem interferir nas lesões de maiores dimensões.
Afirma Rui Tato Marinho: “Somos os novos cirurgiões minimamente invasivos do interior do corpo humano, mais focados no Tubo digestivo. Estamos em todo o lado do interior digestivo”. Feitas as contas ao que se alcançou, o saldo não podia ser mais positivo: a sobrevida na oncologia gastrointestinal aumentou consideravelmente “No caso do cancro colorretal, nomeadamente no tratamento cirúrgico de metástases hepáticas, atualmente é possível curar estes doentes. Há 10 anos isto não era possível, só o é com os novos tratamentos que temos disponíveis. Mesmo nos estádios mais avançados por vezes conseguimos obter a cura. No entanto, isto também acontece muito à custa da prevenção com a implementação de rastreios. Os programas de rastreio são muito eficazes no diagnóstico e tratamento de lesões precoces”, refere Miguel Bispo. Na próxima década é expectável que se assista a outras tantas pequenas grandes revoluções associadas ao desenvolvimento tecnológico continuo. Entre as tecnologias de ponta que se espera que evoluam estão os simuladores de endoscopia. Uma evolução
que permite dar uma formação mais avançada e sofisticada uma vez que são cada vez mais próximos da realidade. Estes simuladores estão a passar por uma fase de evolução relevante e permitem o treino de terapêuticas de grande complexidade. “Temos de aprender com a aviação, que é uma das atividades humanas mais seguras”, afirma Rui Tato Marinho Por outro lado, o desenvolvimento dos ecoendoscópios ditará muita da evolução tecnológica que é expectável na gastrenterologia. Através destes consegue-se fazer intervenção de dentro para fora do tubo digestivo tratando-se múltiplas patologias incluindo as biliopancreáticas. “Sabe-se que os quistos no pâncreas estão a aumentar porque a imagem tem evoluído através da ecografias, tomografias e ressonâncias. Temos muitos achados de lesões pancreáticas acidentais e temos a evolução de as poder tratar com os ecoendoscópios e das suas técnicas. Deixou de se remover apenas a primeira camada do tubo digestivo, para se conseguir ganhar mais profundidade e campo de atuação.
Cada vez menos invasivos, os tratamentos são cada vez mais eficazes. É assim que se está a mudar a história natural das doenças. Para essa mudança contribuíram também as novas modalidades de diagnóstico ótico em tempo real e a difusão de técnicas terapêuticas minimamente invasivas que permitem tratar lesões malignas e pré-malignas. Na próxima década é expectável que se assista a outras tantas pequenas grandes revoluções associadas ao desenvolvimento tecnológico continuo. Entre as tecnologias de ponta que se espera que evoluam estão os simuladores de endoscopia. Uma evolução que permite dar uma formação mais avançada e sofisticada uma vez que são cada vez mais próximos da realidade. Estes simuladores estão a passar por uma fase de evolução relevante e permitem o treino de terapêuticas de grande complexidade. “Temos de aprender com a aviação, que é uma das atividades humanas mais seguras”, afirma Rui Tato Marinho Por outro lado, o desenvolvimento dos ecoendoscópios ditará muita da evolução tecnológica que é expectável na gastrenterologia. Através destes consegue-se fazer intervenção de
dentro para fora do tubo digestivo tratando-se múltiplas patologias incluindo as biliopancreáticas. “Sabe-se que os quistos no pâncreas estão a aumentar porque a imagem tem evoluído através da ecografias, tomografias e ressonâncias. Temos muitos achados de lesões pancreáticas acidentais e temos a evolução de as poder tratar com os ecoendoscópios e das suas técnicas. A ecoendoscopia de intervenção tem progredido de uma forma muito consistente e essa consistência vai aumentar”, afirma Miguel Bispo que está de olhos postos no futuro e em todas as suas potencialidades: “A inteligência artificial nunca irá substituir a interpretação que depende da inteligência humana e da cognição. Nunca irá substituir o raciocínio clínico, mas irá otimizar o diagnóstico endoscópico. Vai facilitar o diagnóstico de muitas condições malignas e pré-malignas precoces não apenas no âmbito da endoscopia, mas também em outras técnicas de imagem. Isso é algo que já existe, mas que será certamente otimizado na próxima década”. Apesar da nova “Geração Zoom”, o contacto humano ainda é insubstituível.
Uma das grandes inovações que se pretende desenvolver e implementar é a terapêutica personalizada ou medicina de precisão. Através desta técnica será possível estabelecer planos de tratamento para cada subtipo de tumor adaptando os tratamentos à sensibilidade de cada tumor. A identificação do perfil molecular de cada tumor vai permitir que se desenvolvam tratamentos específicos.
“Caminha-se no sentido da quimioterapia dirigida. Primeiro identifica-se o perfil molecular do tumor e com base nesse trabalho tomam-se decisões sobre qual a quimioterapia mais eficaz para um determinado doente”, refere Miguel Bispo que explica que o objetivo maior é o distanciamento de quimioterapias padrão e generalizadas.Para que assim seja, espera-se um forte contributo das técnicas moleculares sobretudo no cancro do pâncreas que por ser o que está mais atrasado deverá ser aquele que conhecerá mais evolução. “Para podermos caraterizar o perfil molecular do cancro do pâncreas usamos marcadores à superfície das células, a imuno-histoquimica, e técnicas de PCR que nos permitem amplificar os genes percebendo que que tipo de mutações estão presentes e identificando potenciais alvos para a quimioterapia dirigida” afirma
Miguel Bispo salientando o quão dramático é o prognóstico deste tipo de cancro no qual apenas 5 por cento dos doentes está vivo ao fim de cinco anos. Números que apontam a urgência de encontrar soluções que invertam a dificuldade de combate.
Outra área que deverá conhecer grandes desenvolvimentos será a área dos transplantes, nomeadamente dos transplantes hepáticos para os quais se espera encontrar uma solução. Refere José Velosa: “A transplantação hepática poderá ter de passar por uma nova solução, tem de se passar para uma solução de regeneração do fígado através de células estaminais e medicamentos que removam a fibrose hepática. Tudo isto são desenvolvimentos menos agressivos para os pacientes.
Ode à natureza humanista da gastrenterologia
“Aquele momento solene em que o doente faz a entrevista clínica com o seu médico é um momento único e singular de contacto e de análise mútua do que é transmitido pelo diálogo e pelo comportamento. Há um conjunto de oportunidades que têm um relevo clínico que são insubstituíveis”, refere Guilherme Macedo que crê que o futuro da gastrenterologia passa pela formação e pelo desenvolvimento de competências não técnicas. Depois de várias décadas em que o desenvolvimento da especialidade assentou no desenvolvimento de competências técnicas aprofundadas e em que a tecnologia assumiu um papel central, é tempo de recuar aos valores humanos que fazem parte da natureza da medicina.
Nesse desenvolvimento de competências não técnicas cabe a capacidade de lidar com as adversidades e com as angústias modernas, cabe a organização e a liderança de equipas. Mas também cabe o desenvolvimento de equipas absolutamente profissionalizadas nunca esquecendo que o fluxo acontece sempre de pessoas para pessoas. Independentemente dos seus conhecimentos técnicos. Guilherme Macedo acredita que entre as múltiplas mudanças na especialidade, mudaram as perspetivas de quem a exerce. “A cultura e a mentalidade que subjaz aos jovens de agora não é a mesma de há 30 anos. Não é melhor, nem pior. É diferente.
Ao longo dos últimos anos, por várias razões, os nossos jovens profissionais criaram uma perspetiva muito mais pragmática, um pouco mais egocêntrica e material do que aquela que existia há alguns anos, por força da feroz competição do mercado laboral a que a medicina não pode ser alheia. Isso não é errado, mas tem um figurino emocional muito diferente do que existia e que obriga as gerações que promovem o ensino a adaptar-se a essa nova realidade e ter a capacidade de a realinhar num trajeto de grande respeito e de serviço ao outro.”
No mesmo sentido, Rui Tato Marinho acredita que um médico, no verdadeiro sentido daquilo que é ser médico, “tem um poder
mágico e consegue ter uma das relações pessoais mais empáticas e mais fortes que existem” ao lidar da mesma forma com todas as pessoas independentemente do poder económico ou social que tenham ou da profissão que exerçam. “É o poder de chegar às pessoas”. Para que isso aconteça, espera-se uma grande mudança de paradigma. Um paradigma que foi emergindo nas últimas décadas e que precisa de ser adequado aos tempos modernos: é preciso deixar de tratar das doenças, para se tratar das pessoas na sua singularidade e na sua especificidade. É preciso tratar doentes e não órgãos. Esse será o começo de uma medicina que se quer eficaz e eficiente, que cuida do corpo sem esquecer os males da alma e do social.
O desafio da medicina moderna
O futuro da medicina, e da gastrenterologia, tal como no historicamente já vivido pela humanidade noutras pandemias, ficará inevitavelmente marcado pela propagação global do novo Coronavírus, que teve início nos finais de 2019. Os efeitos desta epidemia universal revelaram-se devastadores do ponto de vista económico, social e médico. Mais uma vez, a gastrenterologia foi colocada à prova, e pelas suas competências técnicas e não técnicas, tem desempenhado um papel crucial no combate ao Vírus. O impacto desta pandemia na nossa área faz-se sentir, não só, nos milhões de exames associados aos planos de rastreio e prevenção na oncologia digestiva que ficam por realizar enquanto as estruturas assistenciais se focam prioritariamente no combate ao
Coronavírus, mas também porque os departamentos clínicos de Gastrenterologia tiveram de se adaptar a uma realidade sanitária quase disruptiva: isso implicou uma reformulação profunda de rotinas , de prioridades e de estratégias formativas que afetaram todos estes profissionais, que se viram em diversas linhas da frente e em muitos bastidores em pleno combate à pandemia Foi particularmente critica a quebra de contacto presencial com os doentes, o presumido risco de contágio na realização de exames como as endoscopias e colonoscopias, e o impacto da suspensão forçada da atividade, aspetos que se revelaram como dos principais desafios que se impõem à especialidade.
PANDEMIA E GASTRENTEROLOGIA NACIONAL
Surpreendidos por um drama humanitário, como está a ser a pandemia pelo coronavírus SARS-COV-2, os Gastrenterologistas portugueses, as suas Unidades Funcionais e as suas instituições científicas, não se confinaram.
Estivemos na linha-da-frente e fizemos parte da solução.
A sua capacidade de reação, adaptando-se à realidade agressiva de doença altamente infetante, participando no tratamento dos doentes infetados, elaborando normas de procedimentos, colaborando com as autoridades de saúde e chamando persistentemente a atenção, para as doenças que ficaram por
diagnosticar, doentes por atender e rastreios por realizar. Foi bem evidente a necessidade vital da nossa prática insubstituível em prol da Saúde dos portugueses e em particular da Saúde Digestiva.
Ficou assim, mais uma vez, demonstrada a robustez das instituições científicas e corporativas da gastrenterologia nacional e a qualidade de preparação e profissionalismo dos gastrenterologistas portugueses, o que a todos deve orgulhar.
Por Professor Doutor Guilherme Macedo, Doutor Leopoldo Matos e Professor Doutor Rui Tato Marinho